Nossos dias de tristeza
Todos nós temos os nossos dias de tristeza. Ela vem sempre após uma frustração, um desânimo em relação a alguém ou a algo, um insucesso, uma perda, uma decepção, uma maldade que nos fere muito. É comum o aparecimento de reações adversas às causadas pela alegria, que sempre nos leva a um estado de graça, de euforia, otimismo e bem-estar físico.
Não vou falar de todos os dias de tristeza pelos quais passei até aqui. Seria demasiadamente enfadonho para o leitor. Assim, o episodio que passo a contar deixou-me muito triste, pois mexeu comigo profundamente. Posso até dizer que a recuperação foi dolorosa e demorada. Foi como se eu tivesse perdido um pedaço de minha vida.
Era o ano de 1995. Aposentados, eu e minha mulher, resolvemos nos mudar de Belém para Fortaleza. Os nossos filhos estavam de acordo, e até era desejo deles. Também era compromisso que eu tinha com eles para ser cumprido tão logo minha mulher se aposentasse. Eu já estava aposentado há mais de três anos. Assim que saiu no Diário Oficial da União a aposentadoria dela, começamos os preparativos para a mudança.
Teríamos que vender o apartamento em que morávamos. Seria a primeira providência. Situação muito difícil de resolver, pois o país passava por crise financeira e os preços dos imóveis estavam aquém do valor real. Felizmente um amigo, que morava fora de Belém, aceitou as nossas condições e selamos o contrato de compra e venda. Resolvido isso, o segundo passo era encontrar apartamento para alugar em Fortaleza. Minha mulher, as duas filhas e dois netos viajaram antes, ficando hospedados na casa de meus pais. Esta condição perduraria até alugar o apartamento onde iríamos morar. Enquanto isso, eu e meu filho permanecemos no apartamento em Belém. Tínhamos que enviar os móveis para Fortaleza e fazer alguns reparos no apartamento, para entregá-lo em bom estado ao comprador.
Depois de dez dias, já sem os móveis e morando desconfortavelmente, chegou a hora de deixar o apartamento, Belém e o Pará, onde vivemos por quase dezessete anos. Foi tempo tranquilo, de concretizações profissionais, de convívios amigáveis e de realização de vida pessoal, a compra de nossa casa, isto é, nosso apartamento, adquirido ainda na fase de acabamento. Após recebê-lo, passamos quase dois anos para deixá-lo como queríamos, para o nosso conforto. Nele passamos dias, meses e anos na maior felicidade, vimos nascerem dois netos, nossos filhos crescerem e entrar para a Universidade e se formarem. Uma de nossas filhas se casou e nele também se separou, mas nada que nos tenha deixado tristes, pois estava escrito – maktub!
No dia anterior à entrega das chaves do apartamento ao novo proprietário, escrevi uma carta para a minha mulher, relatando a angústia de que estava possuído. Era uma carta de despedida, não dela, mas daquele recanto que representava nossa vida, nosso esforço em dotar o nosso lar de conforto, aconchego, cuidado, carinho, lembranças boas, um lugar de moradia para uma família feliz. Dizia eu do aperto que sofria no peito, do coração acelerado quando pensava no dia de amanhã, da ansiedade e da sensação de fraqueza e impotência que invadia o meu corpo, medo de ter que começar tudo de novo. E que isso estava me dando calafrios e tensão muscular. Era um desconforto total. Uma vontade de desistir daquela empreitada, da mudança para Fortaleza.
O que me fazia não recuar era a certeza de que eu estaria, depois de quarenta anos, novamente junto de meus pais, agora velhos e precisando de minha companhia, de meus cuidados. Também minha família já estava em Fortaleza, e eu desejava estar com eles, já era dezembro, não poderia passar o Natal longe deles. Enquanto meu filho dormia em um colchão emprestado colocado no chão, eu dormia em uma rede deixada por minha mulher para essa ocasião, dormia pessimamente, pois não estava acostumado. Terminada a carta, coloquei-a em minha mala já arrumada, pois ela seria entregue pessoalmente, no outro dia, em Fortaleza.
No dia seguinte, logo cedo, o novo dono veio tomar posse de seu imóvel, inspecionou tudo e teceu elogios pelo seu estado de conservação. Tínhamos conseguido colocar todos os guarda-roupas e móveis da cozinha em madeira de lei, durável, resistente – mogno -, abundante na Amazônia por aquele tempo e que ainda não ostentava a condição de espécie em extinção. Até as portas eram de mogno. As do hall, entrada social e de serviço, em mogno e entalhadas por um artesão. Não era um apartamento luxuoso, mas confortável. Tudo isso ficaria no imóvel. Os lustres também!
Eu e meu filho pegamos nossas malas, passei em revista todo o apartamento, nos dirigimos à porta, voltei-me mais uma vez para olhar a sala, sem móveis parecia bem maior do que ela realmente é, olhei para as chaves nas mãos de outra pessoa, que em movimento rápido colocou-a na fechadura e trancou a porta. Exclamei: consummatum est!
Sem trocarmos uma palavra sequer, eu e meu filho nos dirigimos ao aeroporto. Esperamos uma hora para o voo, demoramos mais umas três horas para chegar a Fortaleza. Durante o voo eu me perguntava: o que estará pensando o meu filho aqui ao lado? Ele sabia que eu não queria falar e ele respeitou o meu silêncio. Porém, notei que ele também estava triste, naquela cidade ele passara grande parte de sua vida em criança e toda a sua adolescência, estava se distanciando de seus melhores amigos, de sua namoradinha. Em Fortaleza, apesar de passar sempre suas férias na casa dos avós, tudo seria diferente; agora ele iria para a Universidade, teria que fazer novo grupo de amizade e conviver com vizinhos que não conhecia. Um consolo; ele estaria próximo de primos e primas, tias e tios, e mais tempo com os avós paternos, ainda vivos. Também iria contar com a praia, pois a mais próxima de Belém fica a 60 km de distância.
Recostei-me na poltrona do avião e tentei dormir, não consegui, ele também não. Foi a viagem mais longa e angustiante que fizemos. Nossa alegria só voltou quando reencontramos nossa família no saguão do aeroporto a nossa espera. O medo havia se dissipado, aqueles que nos recebiam iriam reforçar a nossa coragem ao recomeço.