O Grande Oponente

O bar é um dos poucos, se não o único, lugar no qual um homem se sente um homem de verdade. É lá que, sem preconceitos, discutimos futebol, política ou a qualidade da cerveja que bebemos. Sempre bebemos. É lá que não vemos o tempo passar através dos ponteiros do relógio e nos sentimos fortes. É lá que nos sentimos fortes e falamos sobre mulher.

É no boteco que discutimos se a ponte que caiu é culpa de alguém ou de deus. É lá que escolhemos a cerveja que queremos e que dizemos pra quem não conhecemos a sorte de estar vivo, mesmo torcendo pelo time rival ao do dono do bar.

E no boteco descobrimos o real preço da bebida. Um pouco mais cara que no mercado. É o preço que se paga para sentir-se homem de verdade. Se os bares que frequentássemos fossem altares, com certeza nos confessaríamos muito mais e seriamos seres mais puros, melhores.

Afinal, a mesa com cores e logomarca de uma marca qualquer de cerveja não dita a vontade de um frequentador de bar. Vi homens bebendo marcas opostas àquelas que a cadeira estampava. Vi homens lamentando as mulheres que os esperavam em casa ou as que não tinham, mas queriam ter.

E a sorte de todos era estarem juntos. A luz da lua contemplava a todos. Até a mim. Mesmo sem ter o que lamentar, eu lamentei quando fui embora. De centro ou de bairro, é nos bares que mora a verdadeira felicidade.

Vi o dono do bar lamentar por não poder beber para não esquecer a conta dos clientes e, consequentemente. Levei sorte, meus planos eram longínquos. Na minha cabeça, daria tranquilamente, eu falhei ao não salvar meu pai. Morreu sem ir a um bar. Culpávamos-nos por isso e, por isso, sempre forçava minha voz, ainda não tinha esculhambado minhas cordas vocais.

É no bar que ouço um bêbado dizendo que a atual administração fez mais que os últimos seis prefeitos fizeram juntos. “Ela deve ser boa”, pensei antes de conhecer sua diretoria de ensino. Totalmente deteriorada. E ninguém queria isso.

A borboleta bate as asas sempre quando apareço no meu boteco preferido. Não sei se é coincidência ou se é destino. Como eu vou parar no bar? , pensei. Não estava seguro. Tinha gente atrás de mim. Eu estava sendo seguido por ladrões, talvez por deus.

Eu era só. E a cerveja me completava. Talvez por isso o bar esteja sendo contemplado. Se vendessem apenas pipoca ali com certeza o sentimento seria diferente. Os bares nem são tão bons assim.

Melhor beber em casa. Mas aí, ficamos desatualizados e desumanizados. Quem se importa. De vez em quando é necessário sofrer e passar por um bar achando estar no melhor dos lugares mesmo sabendo não ser. Era tudo treinamento, pensei.

Eu lutaria contra oponentes que nem sei se existiam ou quem eram. Eu lutava por sobrevivência. Sabia que não dependia de mais ninguém. Eu era destro e mantinha o pé esquerdo e a mão esquerda a frente do meu corpo. Lutariam comigo seres que nunca vi. Mortos vivos e zumbis. Talvez todos fossem iguais a nós. Nós perdemos o medo e isso é o que importa. Eu era forte. Batia a mão direita no rosto do oponente e os olhos dele me pareciam cegos. Mas mesmo assim eu continuava batendo com a mão direita. Com a sorte de um vencedor eu continuava a bater. Eu era forte, mas não sabia disso. Achava-me um fraco, um covarde.

Quase um estéril. Isso estéril, provavelmente deve ser a pior coisa para um homem. Sentia-me assim. Mas depois de cada golpe dado me sentia grande. E voltava a me sentir mal quando o inimigo revidava. Eu era assim. Todos somos assim. Com a luz da lua tudo poderia ficar mais fácil. Eu veria meu inimigo. Mas será que isso era bom, pensava. Ver meu oponente tornaria tudo mais difícil. Fechei os olhos. E tudo que era realidade com a luz da lua se tornava mais sensível e menos real. Lembrei-me das idéias passadas como verdade absoluta pela TV. Tomara que não se tornem realidade. Mas sempre se tornam mais real que nós mesmos.

Onde as coisas vão parar. Eu quero lutar com a mão e com o pé esquerdo. Mas eles não me obedecem como eu gostaria. Na verdade, eles tinham sorte por só se defender. O ataque machuca mais a si mesmo que ao oponente. É preciso golpear para continuar vivo e é aí que esquerda e direita se igualam.

Tudo ainda não era real. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde teria que ir para a luta. A grande luta. A última e decisiva. Até lá, preferia conviver com a certeza das coisas. No bar. E é no banho seguinte à bebedeira que você sente força para enfrentar o inimigo, mesmo sem saber de fato que é. E a certeza vira pó assim como a água, no movimento da torneira que encerra o dia.

Não sou um grande escritor, nem médio, nem escritor. Nem nada. Mas não posso pensar nisso, se não me sinto como uma merda flutuando por aí sem ser notado com a única reação de desprezo, nojo. Na verdade, a gente descobre tudo isso num bar. Pouco importa o padrão ou a classe social de quem frequenta. Pobres e ricos bebem com o mesmo objetivo. O que muda é a qualidade da ressaca no outro dia. Todos treinamos de verdade para enfrentar o grande inimigo. Usamos o que aprendemos no chuveiro com pessoas igualmente insignificantes. Batemos de direita e apanhamos de direita. A esquerda fica fora. Ninguém se lembra da defesa, da esquerda, numa briga de bar. E depois continuamos a beber e olhamos pros lados e nos sentimos todos iguais. Como deveria ser, mas aí já é outro assunto.

As coisas tem andado diferente ultimamente. Uma briga de bar não é mais apenas briga de bar em alguns lugares. É só motivo mesquinho matar. Mas um assassinato em um bar é como um suicídio. Estamos liquidando com alguém que se confunde conosco entres as mesas e cadeiras coloridas com logomarcas das cervejas. Os donos das cervejarias ficam felizes por patrocinarem a briga e receber tudo de volta, quando vem a conta.