Dr.Petronio, o relógio

Ainda é madrugada e eu acabei de acordar.Pela vidraça da janela do meu quarto posso ver, no clarão de um relâmpago nuvens baixas, carregadas, passando rápidas como atrasadas para um encontro marcado.Deve ter sido o estrondo de um trovão que me fez acordar tão antes da hora.O cheiro bom da terra molhada impregna o ar.Após tantos dias de seca, esse aguaceiro é uma benção.Ao meu lado, o meu amor dorme tranquilo, fico até com inveja, no bom sentido é claro, pois, não é nada agradável despertar tão cedo, enquanto na casa todos ainda dormem.É na calada da noite que pensamentos ruins atormentam nossas mentes.A cama está tão boa que não vou permitir que pensamentos maus invadam o meu aconchego.Na sala, fazendo eco aos meus devaneios , bateu o relógio.O velho relojão do tio José, com suas badaladas compassadas na dança das horas.

Já faz um bom tempo que o relógio chegou aqui em casa.Um móvel grandão, antiquado, destoando da decoração da nossa sala.É uma relíquia que acompanhou muitas vidas.Herança do meu tio, presente de grego, na opinião da minha gente.Na verdade, ele é um trambolho de madeira escura ,trabalhado com florões e volutas , morada nobre de cupins.Seus pêndulos e pesos , da cor do ouro envelhecido, ressoam meio tétrico , trazendo lembranças de uma época distante que se funde com o presente esperando o futuro, na trilogia que compõe nossas vidas.

Quando eu era menina, o relógio fazia parte solene da loja do meu tio e o seu lugar era encostado na parede principal ,bem em frente a porta larga da entrada .Ele nunca esteve a venda , era o símbolo da relojoaria "Horas felizes".O dito, fora adquirido antes de eu nascer, de um fazendeiro que, em um momento de aperto e desespero , se vira obrigado a se desfazer de alguns bens.O pobre homem confessou que, de todas as coisas que se desfizera , aquela peça era a mais sofrida,pois ela tinha uma história de família.Meu tio, penalizado,prometeu que, se um dia ele pudesse resgatar o relógio, esse estaria ao seu dispor, só que, o homem, jamais voltou.

Meu tio amava a sua profissão que dava poucos lucros e muitas alegrias.Com o seu jeito bizarro de ser, ele costumava dar nomes aos relógios que, por algum detalhe , ele achava que tinha algo a ver com pessoas conhecidas.Nas estantes, algumas peças ficavam anos a espera de um comprador, umas por serem caras, outras feias, e algumas encalhadas mesmo.Entre os relógios que receberam nomes, eu tinha as minhas preferências.Amava uma peça de porcelana branca, ornada de flores coloridas e frisos dourados, que recebera o nome de Dora, como a diretora do grupo escolar , uma mulherzinha gorda e que estava sempre muito enfeitada, tal como o relógio.Havia a Eulália, um belo relógio de mesa, confeccionado em alabastro , como a dona do nome, muito elegante e discreto.O mais importante era o Dr.Petrônio, o tal do fazendeiro, e que hoje, toca em minha casa, tão austéro como o juiz de quem herdara o nome.Assim era o mundo fantasioso do tio, tão cheio de encantamento e ingenuidade de uma época passada.

Meu tio querido, se foi em uma tarde tranquila, como fora a sua vida.Por esse tempo eu, mulher feita, cuidando da minha casa e da minha família, morava bem distante da cidade da minha infância e não pude ir lhe dizer adeus.Foi a tia, mulher dele que, tempos depois, me contou , jurando por todos os santos, que, na hora exata da passagem do tio, na loja fechada, o Dr.Petrônio desandou a tocar de um jeito diferente, muito triste, e, como não parava tiveram que ir desligá-lo.Na família ,esse fato é um ponto de honra.Ao abrirem o humilde testamento , dias depois, constataram que o relógio relíquia havia sido destinado a mim.Quando o recebi, entre comovida e angustiada, pensei:Onde vou colocar o Dr.Petrônio?Me sugeriram na copa, mas eu não quis, ele merecia um local mais importante, e depois de muito pensar, lá foi ele ser colocado ,enorme e antiquado, na nossa linda sala de visitas.

Sou obrigada a confessar, cheia de remorsos, que o relógio me encomoda, nem sei bem o por que, já que no passado, tive tantos bons momentos ao seu lado, escutando as lindas histórias que meu tio contava com a sua imaginação tão fértil.Hoje, o relógio me parece um ataúde encostado na parede da sala.Nas horas mortas da noite, principalmente ,com a tempestade de hoje, ele toca tão soturno que me arrepia e me transporta a loja do tio, conjugada com a casa onde morei , cheia de relógios com nomes de viventes de um tempo perdido.Revejo o meu tio com a sua viseira escura, trabalhando , curvado na sua mesa.Novamente, lá na sala, o Dr.Petrônio bateu as horas, e, instintivamente, contei as badalas , é muito cedo ainda, e eu, que não queria pensar em coisas tristes, me deixo levar pelo momentos fugazes da minha vida que passa.

lucia verdussen
Enviado por lucia verdussen em 10/12/2012
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