O CRIME - PERDA DE IDENTIDADE



Como sempre fez durante os anos em que cuidou de minha casa, atendeu prontamente ao chamado. Fisionomia serena, lábios com marca de leve sorriso, postou-se na entrada do meu estúdio doméstico e proferiu o habitual e solícito: “Senhor?”. Além de respeitosa maneira de tratar o patrão, aquela palavra no modo interrogativo expressava duas de suas características como empregada doméstica: a amenidade de temperamento e a disponibilidade para servir. Costumava dizer que trabalhava por amor, em reconhecimento ao quanto sua família recebera da minha em oportunidades de trabalho, salário digno, tratamento civilizado e educação, nunca deixando de enfatizar o significado, para ela, seus pais, irmãos e os filhos dela e destes, de casas a eles doadas pelo meu clã. Claro que a remuneração como contrapartida pelo eficiente trabalho era importante, eventuais presentes também, mas uma significativa dose de dignidade na maneira de tratar era incentivo significante em seu labor. Sempre me parecera evidente. Demonstrava-se gratificada em me ver satisfeito com suas ações laborais ou na contemplação da minha boa aparência ao vestir uma roupa de que ela cuidara ou pela qual eu havia optado atendendo a uma opinião dela. Sua realização, à falta de chances próprias de maior ascensão social, parecia consistir em apreciar meus sucessos e conquistas e achar que tinham contado com alguma colaboração de sua parte, ainda que modestíssima, imponderável, mesmo. E contribuía, sim. Mantinha a casa em ordem, preparava requintados quitutes para convidados, realizava as compras para o abastecimento doméstico, assegurava a manutenção de uma retaguarda indispensável. Assegurava-me disponibilidade de tempo para dedicar ao que realmente constituía o objeto fim de minha vida.
Sem dúvida, ao receber aquele chamado, atendeu na certeza de, mais uma vez, poder servir. Ficou estática e sem cor, recostando-se na parede para não desabar, quando eu estendi o envelope e lhe disse, com uma secura como ela nunca antes ouvira de mim:
_ Aqui estão a carteira de trabalho, com sua demissão assinada e o dinheiro a que você tem direito pela rescisão de contrato. Estou lhe pagando TUDO o que a lei determina. Nada a menos! NADA A MAIS. Aliás, estou lhe dando um bônus em dinheiro que corresponde ao dobro do valor da rescisão. Não incluí nos documentos o carnê do colégio de sua filha porque vou continuar pagando as mensalidades, mesmo você não trabalhando mais aqui.
Falei de forma peremptória. Ela ouviu com os olhos parados voltados em minha direção, pálida, músculos do rosto contraídos, o pânico revelando-se na imobilidade impressionantemente absoluta do corpo. Podia perceber que estava gelada, mesmo distante e sem tocar-lhe a pele. Parecia não conseguir respirar e tive a impressão de que só não caíra porque estava recostada à parede. Colada. Tanto que não pegou o envelope. As mãos estavam espalmadas contra a parede. Uma reação instintiva típica de uma pessoa encurralada por um agressor sinistro, este era o meu entendimento como médico. Levantei-me e toquei em um de seus braços com o envelope:
_Pegue, quer que eu conte as cédulas? Não precisa, está tudo absolutamente certo, você me conhece o bastante para saber o quanto eu sou correto, mas se quiser conferir...
Recebeu o envelope como se fosse uma autômata e ficou segurando o objeto de encontro ao peito, provavelmente, a única forma de evitar que caísse de suas mãos.
_São menos de três horas. Dá tempo de você arrumar seus pertences e chegar cedo em sua casa, antes do horário habitual. Ah! Acrescentei um dinheiro para você pagar um táxi. E acrescentei uma carta de recomendação na qual destaquei a boa qualidade de seus serviços profissionais.
_Deixar o apartamento ...? Levar minhas coisas ...?
_Sim! E levar seu dinheiro também!
_Eu...Demitida?
_Sim, foi o que eu lhe disse de forma clara para qualquer um entender. Tanto mais que você é muito inteligente, entende qualquer coisa com grande facilidade. DEMITIDA!
Eu comecei a sentir uma compressão na garganta, acompanhada de calor na cabeça, por tal motivo voltei à minha poltrona, a qual ela trazia sempre tão arrumada. Ela contemplou o envelope. Ainda não havia assimilado o que estava simbolizado naquele pedaço de papel. Para meu próprio alívio frente ao que imaginava estar passando no interior destroçado daquela criatura, por quem, afinal, sentia gratidão e afeto, repeti com mais firmeza:
_Pode ir e não esqueça uma única peça sua, para não ter de voltar aqui. Se por acaso esquecer, procure na portaria. Mais tarde vou fazer uma inspeção em seu quarto e se houver ficado alguma coisa, o porteiro lhe entrega. Sim, deixe a chave do apartamento que está com você e ... BOA SORTE!
Quando afinal conseguiu se mover, dirigiu-se à porta, mas não andou mais que dois passos. Parecia cambaleante. Apoiada com uma mão no portal olhou-me com a expressão facial mais comovente do mundo:
_Posso saber o motivo? Não roubei, nem lhe menti, não quebrei nenhum objeto de valor. Por quê, então e desta forma? O senhor me conhece desde quando eu tinha cinco anos, conhece minha mãe, meu pai, meus irmãos e me conhece bem, sabe que eu não sou capaz de uma maldade, menos ainda para lhe prejudicar ou à sua família, por quê age desta forma comigo? Vai casar novamente? Só pode ser isso, sua futura esposa não me quer aqui, é isto, não é? Eu entendo, o que é duro é o senhor me tratar assim. Chegar ao ponto de me proibir de vê-lo e de ver OTTO, que o senhor mesmo sempre fez questão de dizer que eu ajudei a criar e que fui uma mãe para ele. Me explique, pelo amor de DEUS!- Disse, já aos prantos.
_Você revelou para as moças da Loja dos Games a marca de meus sapatos e cinturões, quer dizer, onde eles são feitos. Agora, outros vinte, cinquenta homens ou mais podem ter sapatos e cinturões iguais aos meus.
_Mas... O que há de tão criminoso nisso, além do que, elas me perguntaram porque querem lhe dar um presente de aniversário bom, devido aos favores que o senhor faz a elas como médico. Disseram que acham lindos seus sapatos mas não encontraram em nenhuma loja onde pesquisaram. Me perdoe, POR TUDO O QUE FOR DE MAIS SAGRADO! Eu não pensei que estivesse fazendo nada de grave.
_Somente para encerrar a conversa e você retirar-se de vez deste apartamento: os sapatos e cinturões são, aliás, ERAM minha identidade, o que me fazia diferente de outros homens, por serem fabricados sob encomenda, em outra cidade e de acordo com um design personalizado. Nem a etiqueta eu consentia que o fabricante colocasse nas peças. Uma pessoa precisa de uma marca, um sinal próprio, uma espécie de timbre somente seu, ora porra, não vou ficar mais jogando conversa fora, um homem precisa de algo muito específico, para ser identificado,
e nunca vir a ser reduzido a mais um na multidão. Como eu vou ser lembrado depois que morrer? Você destruiu minha identidade social e eu não perdoo!
Sua voz tinha se reduzido a um fiapo de sons entrecortados e quase inaudíveis. Quanto a mim, estava igualmente destroçado. Mas não podia voltar atrás. Retroceder, para mim, em certos aspectos da vida, jamais. Se ela jorrava lágrimas, eu chorava por dentro.


continua em próximo capítulo
Alfredo Duarte de Alencar
Enviado por Alfredo Duarte de Alencar em 09/12/2012
Reeditado em 31/08/2015
Código do texto: T4027371
Classificação de conteúdo: seguro