O ensaio

Sabia que mais dia menos dia, aquela cena aconteceria. Ensaiou a vida inteira aquele momento. Era um monólogo. Não precisava contracenar com outras pessoas. As palavras, minuciosamente escritas, ditas, repetidamente pronunciadas, ficavam mais contundentes na sua verdade a cada ensaio que ela fazia em frente ao espelho. Sua expressão facial, estudada em cada detalhe era quase uma obsessão. Não se permitiria por nada errar na hora certa, na hora do "valendo".

Dia após dia, incansavelmente ela ensaiava o texto. Às vezes adentrava a madrugada, na tentativa de melhorar sua performance e, no grande dia, sua atuação ser perfeita, digna de um Oscar.

Não tinha amigos, não se divertia. Apenas trabalhava naquele emprego tão medíocre como havia sido toda sua vida. Mas, não importava, só trabalhava para sobreviver, não gostava de luxos. Tudo o que tinha bastava para sua sobrevivência.

A única coisa que funcionava na sua vida era aquele ensaio diário, um ritual do qual não abria mão por nada. Todo o resto era mecânico. Comer, dormir, acordar, tomar banho, tudo era feito com tanta automaticidade, que acabava por comer a mesma coisa por vários dias seguidos, sem se dar conta. Até o ônibus que pegava todos os dias para ir trabalhar era o mesmo, no mesmo horário, com o mesmo motorista, e ela nem se dava conta.

Dias, semanas, meses se passaram e seu ensaio não terminava. Nunca estava bom o suficiente. Mas, era sua única alegria esperar aquele momento em que sua cena seria realizada. Talvez, nesse momento, ela deixasse de ser invisível para os outros e até para si mesma. Naquele momento, ela renasceria, não do ventre de sua mãe, como na primeira vez, mas das suas próprias entranhas.

Tantos anos se passaram, sem que a cena ficasse perfeita. Até que um dia, tão cansada, desanimada, foi, ensaiar mais uma vez diante do espelho. Estava chegando o grande dia. Mas, ao se deparar com sua imagem, soltou um grito tão apavorante que seu corpo todo estremeceu. Sua pele enrugada, seus cabelos brancos, seus olhos sem brilho, sua boca murcha... Quando isso acontecera? Suas lágrimas começaram a irrigar aquela terra seca, mas era tão tarde. Passara a vida inteira ensaiando, esperando o grande dia, mas agora era tarde demais. Sua voz trêmula não diria o texto de forma eloquente, sua expressão facial praticamente desaparecera.

Descobriu da pior forma possível que não vivera e que a vida não é um ensaio.

Ane Rose
Enviado por Ane Rose em 08/12/2012
Reeditado em 05/01/2013
Código do texto: T4026467
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.