QUARENTA E SETE GRAUS
A menina (dos olhos) não se cansa de olhar
o mar e o céu azul na retina das lembranças...
Levou o recorte de papel que a mulher deixara no criado. Seria uma forma de abordá-la: “Vim te devolver isto”. Abriu-o outra vez e leu em silêncio o poema que escrevera no verso do bilhete dela. Dobrou-o cuidadosamente e o guardou outra vez na carteira. Entregaria a Vannini, no momento do desembarque em Paris. E reprisou a cena do abraço com a mãe no Aeroporto. As preocupações dela sobre um sonho que tivera com o filho navegando um navio sem timoneiro chocando-se com o paredão da encosta. Fernão tinha certeza que desta vez não voltaria sem ter uma conversa com Vannini e quando retornasse da França contaria tudo a Talita. Malgrado, não conseguisse nada com aquela que fora sua esposa, não poderia perder a oportunidade de construir novo lar com outra pessoa. Pelo sim, pelo não, Talita sabia de sua viagem apenas para concluir o curso de aviador.
Nos momentos de aflição, as horas parecem escorrer mais lentamente e cada minuto torna-se uma eternidade. Fernão estava em um isolamento de quatro paredes aladas que pareciam não sair do lugar. Sequer ouvia com clareza o ronco das turbinas, tal era sua compenetração na leitura de Bach. Tudo era um silêncio mortal, até que de repente, uma voz se fez ouvir em toda a aeronave: “Senhoras e senhores, estamos sobrevoando a costa Sul do Senegal. Temos nuvens pesadas em rota de colisão... Haverá alteração no plano de voo e atraso de trinta minutos na hora prevista para o pouso em Dakar. A temperatura externa é de quarenta e sete graus negativos. Boa noite e boa viagem!”
— Aceita um suco — disse sorridente a aeromoça.
— Sim, eu aceito! — respondeu Alice.
— Acho que esses companheiros de viagem confirmaram presença na Convenção Internacional para as Artes e Literatura na França. Aquele não é o Arnaldo?
— É ele sim! E com o notebook aberto. Com certeza fazendo o enxugamento do poema que inscreveu no Salon Du Livre.
— Será autobiográfico? Arnaldo pediu demissão do Marista e dizem que se separou da mulher...
— Isso é polêmico, polêmico demais — disse Solange — Não leste as últimas postagens de Vaninha Lopes? Pessoalmente é uma pessoa realizada, mas sua poesia transpira desassossego da alma, inquietude e solidão. No caso de Arnaldo, creio que sejam arranjos articulados, ele é especialista nisso. Realmente, Arnaldo se desentendeu com padre Davi. Como educador, o padre não evoluiu. Tem cultura, mas parece nunca ter lido Paulo Freire. Davi sempre foi autoritário, um 'ditador', e não um 'mediador' de conhecimento.
— Nascemos velhos — diz Alice — nossa sociedade tenta condicionar a todos a tradição, os costumes, etc. Só quando adultos e desfrutando da razão crítica, vamos rejuvenescer... vamos nos livrar daquilo que não nos interessa, não nos motiva, jogamos fora grande parte do fardo...
— Será que Arnaldo não foi ao velório do padre Davi? Não o vi por lá!
— Foi. Eu o vi. Calado como sempre, mal me cumprimentou. Arnaldo é durão e o padre, uma pedra, uma pedra que a Igreja não conseguiu lapidar. Que Deus o tenha!...
— Cruz credo! isso é hora de falar em morte? Tenho pânico de voo alto! Prefiro o solo onde mantenho meus pés bem firmes presos no chão. O único voo que faço com segurança e sem medo é o literário. E com prazer também, é claro!
— Claro, Solange. Foi este voo literário que nos pôs nas asas deste avião. Mas, à morte, não temo. O que terá de ser feito, um dia será. Só não quero que o Anjo Negro venha apanhar-me agora.
—Anjo Negro! Também li aquele confrade no Portal Literal. A construção das identidades e as representações de mundo são retratadas em suas obras, com um olhar sistêmico-funcional. Com uma magnífica literatura de raiz...
— Você entende muito dessas coisas, não é mesmo?
— Não sou crítica de literatura. Sou pesquisadora de Linguagem. A priori, o objetivo desta viagem é científico. Logo depois do encontro no Salon Du Livre, devo ir ao Sul da França, na região administrativa de Languedoc-Roussillon, pesquisar Joseph-Abraham Bénard, um comediante francês.
– Também não sou crítica. Produzo meus textos depois de ler livros de Filosofia... pego uma frase, um conceito e disparo a escrever. Sabemos que as palavras criam mundos, nossa responsabilidade é usarmos a imaginação, e a criação para tentar colaborar na melhoria do mundo real. Qualquer ato humano participa do devir, das mudanças.
— Sabia que a viúva do padre está neste voo?
— Chanana?
- Sim! Parece que vai divulgar obras do finado.
— Qual foi mesmo o mal que o matou?
— Padre Davi morreu do mal de Lázaro.
— Hanseníase?
— Sim, hanseníase. Dizem que doenças antigas, praticamente erradicadas, estão voltando.
— Já soube que o Carrero vai ser publicado na França?
— É mesmo! Qual dos livros será traduzido?
— A Preparação do Escritor.
— Nossa! É o mesmo que ensinar inglês aos ingleses. No bom sentido é claro, porque a França continua sendo o berço da linguística e coleciona o maior número de Prêmio Nobel de Literatura.
Fernão fechou o livro de Bach. Era aquela a terceira vez em menos de dois anos que lia Capelo Gaivota.
A menina (dos olhos) não se cansa de olhar
o mar e o céu azul na retina das lembranças...
Levou o recorte de papel que a mulher deixara no criado. Seria uma forma de abordá-la: “Vim te devolver isto”. Abriu-o outra vez e leu em silêncio o poema que escrevera no verso do bilhete dela. Dobrou-o cuidadosamente e o guardou outra vez na carteira. Entregaria a Vannini, no momento do desembarque em Paris. E reprisou a cena do abraço com a mãe no Aeroporto. As preocupações dela sobre um sonho que tivera com o filho navegando um navio sem timoneiro chocando-se com o paredão da encosta. Fernão tinha certeza que desta vez não voltaria sem ter uma conversa com Vannini e quando retornasse da França contaria tudo a Talita. Malgrado, não conseguisse nada com aquela que fora sua esposa, não poderia perder a oportunidade de construir novo lar com outra pessoa. Pelo sim, pelo não, Talita sabia de sua viagem apenas para concluir o curso de aviador.
Nos momentos de aflição, as horas parecem escorrer mais lentamente e cada minuto torna-se uma eternidade. Fernão estava em um isolamento de quatro paredes aladas que pareciam não sair do lugar. Sequer ouvia com clareza o ronco das turbinas, tal era sua compenetração na leitura de Bach. Tudo era um silêncio mortal, até que de repente, uma voz se fez ouvir em toda a aeronave: “Senhoras e senhores, estamos sobrevoando a costa Sul do Senegal. Temos nuvens pesadas em rota de colisão... Haverá alteração no plano de voo e atraso de trinta minutos na hora prevista para o pouso em Dakar. A temperatura externa é de quarenta e sete graus negativos. Boa noite e boa viagem!”
— Aceita um suco — disse sorridente a aeromoça.
— Sim, eu aceito! — respondeu Alice.
— Acho que esses companheiros de viagem confirmaram presença na Convenção Internacional para as Artes e Literatura na França. Aquele não é o Arnaldo?
— É ele sim! E com o notebook aberto. Com certeza fazendo o enxugamento do poema que inscreveu no Salon Du Livre.
— Será autobiográfico? Arnaldo pediu demissão do Marista e dizem que se separou da mulher...
— Isso é polêmico, polêmico demais — disse Solange — Não leste as últimas postagens de Vaninha Lopes? Pessoalmente é uma pessoa realizada, mas sua poesia transpira desassossego da alma, inquietude e solidão. No caso de Arnaldo, creio que sejam arranjos articulados, ele é especialista nisso. Realmente, Arnaldo se desentendeu com padre Davi. Como educador, o padre não evoluiu. Tem cultura, mas parece nunca ter lido Paulo Freire. Davi sempre foi autoritário, um 'ditador', e não um 'mediador' de conhecimento.
— Nascemos velhos — diz Alice — nossa sociedade tenta condicionar a todos a tradição, os costumes, etc. Só quando adultos e desfrutando da razão crítica, vamos rejuvenescer... vamos nos livrar daquilo que não nos interessa, não nos motiva, jogamos fora grande parte do fardo...
— Será que Arnaldo não foi ao velório do padre Davi? Não o vi por lá!
— Foi. Eu o vi. Calado como sempre, mal me cumprimentou. Arnaldo é durão e o padre, uma pedra, uma pedra que a Igreja não conseguiu lapidar. Que Deus o tenha!...
— Cruz credo! isso é hora de falar em morte? Tenho pânico de voo alto! Prefiro o solo onde mantenho meus pés bem firmes presos no chão. O único voo que faço com segurança e sem medo é o literário. E com prazer também, é claro!
— Claro, Solange. Foi este voo literário que nos pôs nas asas deste avião. Mas, à morte, não temo. O que terá de ser feito, um dia será. Só não quero que o Anjo Negro venha apanhar-me agora.
—Anjo Negro! Também li aquele confrade no Portal Literal. A construção das identidades e as representações de mundo são retratadas em suas obras, com um olhar sistêmico-funcional. Com uma magnífica literatura de raiz...
— Você entende muito dessas coisas, não é mesmo?
— Não sou crítica de literatura. Sou pesquisadora de Linguagem. A priori, o objetivo desta viagem é científico. Logo depois do encontro no Salon Du Livre, devo ir ao Sul da França, na região administrativa de Languedoc-Roussillon, pesquisar Joseph-Abraham Bénard, um comediante francês.
– Também não sou crítica. Produzo meus textos depois de ler livros de Filosofia... pego uma frase, um conceito e disparo a escrever. Sabemos que as palavras criam mundos, nossa responsabilidade é usarmos a imaginação, e a criação para tentar colaborar na melhoria do mundo real. Qualquer ato humano participa do devir, das mudanças.
— Sabia que a viúva do padre está neste voo?
— Chanana?
- Sim! Parece que vai divulgar obras do finado.
— Qual foi mesmo o mal que o matou?
— Padre Davi morreu do mal de Lázaro.
— Hanseníase?
— Sim, hanseníase. Dizem que doenças antigas, praticamente erradicadas, estão voltando.
— Já soube que o Carrero vai ser publicado na França?
— É mesmo! Qual dos livros será traduzido?
— A Preparação do Escritor.
— Nossa! É o mesmo que ensinar inglês aos ingleses. No bom sentido é claro, porque a França continua sendo o berço da linguística e coleciona o maior número de Prêmio Nobel de Literatura.
Fernão fechou o livro de Bach. Era aquela a terceira vez em menos de dois anos que lia Capelo Gaivota.