TRANSPLANTE MÚLTIPLO
Elísio herdou os olhos azuis da mãe e o cabelo louro do pai.
Aos 17 anos era o melhor jogador do colégio e todas as garotas imaginavam que os deuses do Olimpo tinham se inspirado nele para modelar os seus corpos, seu jeito de andar, seu sorriso enfeitado pelos dentes perfeitos que cintilavam ao sol.
Mas a decepção por ter perdido o vestibular mais concorrido do país, fez uma reviravolta na vida de Elísio.
De uma hora para outra todos os sonhos desmoronaram e o consolo se materializou numa pedra de crac.
Uma, duas, três, vinte...
Já não podia viver sem.
Os objetivos foram negligenciados por terem perdido a razão de ser.
A mesada não dava mais para sustentar o vício, cada vez mais presente, cada vez mais forte.
Passou a roubar as coisas de casa depois que foram vendidos todos os seus pertences, telefone celular, ipod, som, bicicleta, câmera, óculos e tênis de marcas famosas, as camisas dos times do coração, com autógrafos de jogadores, ídolos de todos os jovens de sua idade.
No início apenas dinheiro em espécie, depois objetos de maior valor até culminar com a coleção de santos antigos, colecionados pela família desde o final do século dezoito.
A avó denunciou o roubo numa reunião de família.
E o mundo desabou de vez sobre a sua cabeça.
Para não ouvir reclamações e ficar longe da vigilância saiu de casa.
Antes a rua.
Melhor os desconhecidos que não lhe negavam um trago na pedra que aquela família abominável.
Odiava a todos eles.
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- Alô.
- É Cavalo Negro.
- O que é que você quer?
- Negociar. Consegui mercadoria. As quatro peças de uma só fonte. Sangue limpo, O positivo. Dezessete anos...
Atleta, quer dizer, ex-atleta.
- Onde está?
- Comigo. Posso levar agora porque está inconsciente, chapado.
- Ok. Vou chamar a equipe.
Desde que entrara no negocio do tráfico de órgãos humanos João Bosco melhorou de vida a olhos vistos e a sua lojinha de souvenires no Shopping Central era o disfarce perfeito para lavar a entrada do dinheiro.
Tudo muito bem documentado com notas fiscais de entrada e de saída das mercadorias fantasmas, cujos impostos eram pagos regularmente, em perfeita harmonia com o fisco.
Não importava a nacionalidade do comprador, o pagamento teria que ser, invariavelmente, em reais.
Dólares, euros, libras ou quaisquer outras moedas precisavam ser cambiadas e isso deixava um péssimo rastro luminoso e evidência, era a última coisa que João Bosco queria para si e para seus negócios, nesses tempos que eram os melhores de sua vida.
Nessa tarde de domingo, saiu do depósito vazio que mantinha num bairro afastado, levando no furgão, semi-inconsciente, depois de fumar a décima pedra, o sobrinho Elísio para a mansão do doutor que faria a retirada dos órgãos.
O emblema do horto mercado aplicado na lateral do veículo indicava, a qualquer um observador inoportuno, que o doutor iria passar dias na granja porque se tratava da entrega de mais uma super feira.
- Doutor eu quero um milhão e duzentos.
- Você enlouqueceu?
- Não senhor, veja a mercadoria... É de primeira.
- Não acho que valha tanto.
- É pegar ou largar.
- Vamos primeiro negociar.
- Se o senhor não quiser...
- Você não pode fazer nada. Sabe que estamos no mesmo barco e as divisões devem ser feitas como sempre foram para não dar problema.
- Mas eu arranjo a mercadoria...
- Que sem mim e os compradores, não serve para nada. Eu tenho que pagar à equipe. Coleta de órgão não se faz só.
- Quanto o senhor pagará dessa vez?
- O preço da tabela.
- Quanto está um rim?
- Cem mil.
- E o pulmão?
- Duzentos.
- E o fígado?
- Completo, deixe ver, está na outra tabela, cá está, trezentos.
- Nesse caso eu só posso vender a metade.
- Então vai ser cento e cinquenta.
- Mas é artigo de primeira, só tem dezessete anos de uso.
- Mas é de drogado...
- Ele começou no mês passado, não deu ainda para estragar.
- Vá lá, vou acrescentar 20% porque você conhece a origem.
- Claro doutor. É meu sobrinho, eu vi nascer.
- Os dois rins, um pulmão, meio fígado... Cem, duzentos, quatrocentos, quinhentos e cinquenta, mais vinte por cento, dá o total de seiscentos e sessenta mil. Fechado?
- Setecentos, que é uma conta redonda.
- Está bem. Vamos levar para a sala de cirurgia. O anestesista já chegou.
- Mas ele vai ficar vivo, não é doutor?
- Vai sim. Você está lidando com profissionais capacitados.
Ele vai ter algumas restrições, mas poderá ter a vida quase normal...
O fígado se regenerará dentro de pouco tempo...
O pulmão não vai fazer muita falta porque ele não será mais atleta... Precisará fazer hemodiálise duas ou três vezes por semana, até arranjar um rim para fazer o transplante que o tio querido vai patrocinar... (risos)
Não se preocupe meu caro, ele vai ficar bem...
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No dia seguinte os jornais noticiaram que graças a uma denuncia anônima, fora encontrado, num banco de praça, um rapaz ainda anestesiado, morador de rua, cujos órgãos foram retirados, mas que, graças a deus, estava passando bem...