SEXTA FEIRA

O sujeito que mistura bebida, direção e alta velocidade devia ter os dois olhos perfurados para, irremediavelmente cego, não mais poder dirigir.

A mistura dessa vez tinha um poste de alta tensão como parte integrante do enrosco.

E com esse componente a mais, deu-se a inhorna.

Vida de civilizado é assim. Se falta energia elétrica, para tudo.

Desde o semáforo da avenida largona até a bombinha do aerador do aquário.

Ainda bem que eu não cultivo o detestável hábito de manter outros animais dentro de casa a título de “bichinho de estimação”.

Mesmo depois do almoço e de barriga cheia é humanamente impossível dormir sob o calor de quase 34ºC e, sem a energia, o condicionador de ar e o ventilador, tornam-se duas peças totalmente inúteis.

Ver televisão? Nem pensar! E a luz? Cadê?

Fui para a cozinha tomar um cafezinho.

Que fim levou a caixa de fósforos?

Aqueles palitinhos que ficaram obsoletos depois que inventaram fogão com acendimento automático.

Você gira o botão e o fogão faz – bizit, bizit – e a chama azul crepita sob a chaleira.

Mas para que isso aconteça é preciso energia elétrica...

Perdida no fundo da última gaveta do armário, naquela que ninguém nunca abre, achei a caixa de fósforos.

Maravilha de café, encorpado, quentinho...

Tão bom que merecia a companhia de um bolo.

Decidido.

Vou fazer um bolo.

Daqueles 1, 2, 3, 4 e 1/2 bem simples.

O passo seguinte foi conferir se a despensa tinha os ingredientes leite, açúcar, farinha de trigo com fermento, ovos e pacote de manteiga.

Coloquei na bacia da batedeira:

1 xícara de leite;

2 xícaras de açúcar;

3 xícaras de farinha;

4 gemas e

1/2 pacote de manteiga.*

Com a colher de pau, dei um giro em todos os ingredientes para misturá-los de forma que quando a batedeira começasse a funcionar eles não pulassem pela borda sujando toda a cozinha...

Oh! Idiota, como é que a batedeira vai funcionar se não tem energia?

Mais uma vez eu desejei que a mãe daquele motorista infame tivesse provocado o aborto para ele não ter a oportunidade de nascer.

Uns dez minutos depois de batidas com a colher de pau, a mistura se tornou homogênea.

Agora bater as claras em neve e incorporar, sem bater, aos poucos, suavemente para que o bolo fique bem aerado e fofinho.

Depois da forma untada e enfarinhada, comecei minha briga com o forno.

Será que o desgraçado que desenhou esse fogão, alguma vez tentou acender o forno usando fósforos?

Com certeza, não.

Por causa dos dedos chamuscados tive que apelar para o palitinho que minha mulher usa para retirar o excesso de esmalte das unhas.

Com um chumaço de algodão embebido em acetona, finalmente, consegui acender o forno e enquanto o bolo assava, dei uma geral na bagunça da cozinha.

Fora do forno vi que o bolo cresceu, ficou bonito, mas estava quente prá dedéu.

Tinha que esperar esfriar. Nesse meio tempo, fazer o quê?

Vou tomar banho. Água fria. Fria não, gelada porque o chuveiro também depende da energia para funcionar.

Tomei banho pulando como no tempo em que era criança.

Enquanto me vestia, achei que a janela do quarto estava precisando de uma série de lâmpadas coloridas para entrar no espírito natalino.

Decidi então ir ao centro comprar a caixinha de lâmpadas produzidas pelos escravos chineses para o deleite do mundo.

O copo d’água que bebi antes de sair de casa estava quente, porque o gelágua estava parado por falta de energia e dentro da geladeira, hoje em dia, não há mais espaço para se colocar uma única garrafa d’água.

Sem elevador tive que enfrentar os doze lances de escada até chegar ao chão, mas descendo não mata ninguém.

Afinal prá baixo todo santo ajuda.

Na rua o trânsito estava entrançado.

O caminhão da concessionária de energia trabalhando para substituir o poste danificado e os controladores de tráfego tentando por alguma ordem naquela bagunça generalizada.

Muito bem sentado no ônibus esperei pacientemente que ele chegasse ao centro.

O trânsito estava um horror.

Todo mundo resolveu sair de casa nessa tarde.

O percurso que se faz em vinte minutos, levou uma hora e quarenta.

Mas eu sou teimoso e fui comprar o pisca-pisca.

As ruas apinhadas.

Vitrines iluminadas.

Lojas com gente saindo pelo ladrão e praticamente na porta de cada uma delas, aqueles anunciantes das vozes empostadas, discorrendo sobre as maravilhas que você vai encontrar lá dentro.

- Venha minha senhora aproveitar a promoção de natal. Nas compras acima de R$50,00 a senhora receberá um cupom para concorrer a esse maravilhoso automóvel. Preencha o seu cupom e participe do sorteio desse carro zero quilômetro... (se você fechar os olhos vai ver Silvio Santos se materializar em sua frente)

E uma vendedora de chip de telefone celular, portando um tabuleiro abaixo da linha da cintura e preso aos ombros, com voz estridente, gritava quase histérica: chip da --, na promoção, R$5,00...

- Compro ouro, compro ouro, compro ouro...

- Empréstimo consignado, a melhor taxa do mercado, sem consulta a Serasa e SPC...

- Churros recheados. Crocante e macio.

Apitos de guardas de trânsito, buzinas dos apressadinhos dentro dos carros.

- Água mineral, um real!

- Olha a promoção de bolsas.

Depois de experimentar várias, consegui uma caixinha funcionando perfeitamente, com 200 lampadinhas coloridas, que acendem em obediência a diversos programas.

E haja paciência para enfrentar a fila para poder pagar.

Com meu troféu na mão, fui para a fila no terminal dos ônibus.

Muita gente.

Mulheres com criancinhas de colo, sonolentas, cansadas, famintas.

Consegui entrar no terceiro ônibus que apareceu bem depois que os furadores de filas já haviam desaparecido.

Ninguém tem autoridade para conter esses aproveitadores.

O ônibus mal saiu do terminal, entrou num engarrafamento homérico.

O trânsito estava todo parado. Nem para frente nem para trás.

Enquanto eu olhava, pela janela, a decoração da cidade, lembrei-me de um conhecido peruano que certa vez disse;

- O trânsito das sextas feiras é demoníaco!

Realmente Alfonso tem toda razão.

Não existe motivo determinado, mas nas sextas feiras, em qualquer parte do mundo, o trânsito é demoníaco.

* essa receita existe e pode ser feita substituindo o leite por suco de fruta, refrigerante ou vinho.

Também pode misturar na massa um punhado de uvas passas ou frutas secas.

E, se quiser também pode substituir 2 das xícaras da farinha de trigo por flocão de milho. Nesse caso terá que colocar 1 colher de sopa de fermento para bolo.