Ela mora ao lado
Aqui na rua onde eu moro, ao lado do prédio em que vivo há tão pouco tempo, existe uma casa velha que contrasta entre as construções modernas do bairro. Logo que eu vim para cá, achava estranho aquela casa de madeira, com um jardinzinho mal cuidado, com seus cachorros velhos, coabitando entre prédios de grandes construtoras, todos modernos com suas piscinas, coberturas e estacionamentos. Mas ninguém parecia se importar. A convivência sempre foi pacífica. As pessoas da casa ao lado nunca incomodaram, são trabalhadoras, não dão o que falar. Foi então que um dia eu descobri.
Talvez pela minha distração, por minha cabeça estar sempre tão preocupada com problemas reais e inexistentes (principalmente os inexistentes) que nunca reparei que na casa ao lado vivia uma senhora entre aqueles que eu já conhecia. Quando eu a vi da primeira vez, fui tomada de um susto misturado com horror. Ela deveria ter pelo menos cinqüenta anos e um metro e quarenta de altura. As mãos eram em formas de garras e as pernas completamente tortas, com os pés voltados para dentro. Uma bengala era seu meio de locomoção pelo jardim decadente e raras vezes eu a via na calçada. Os outros vizinhos já estavam acostumados com ela. Eu, como era de se esperar, levei um choque. A pobre mulher era uma aberração.
Mas com o passar do tempo, também me habituei com ela. Me habituei a passar na frente da casa e dar-lhe um tchauzinho e cinco minutos depois, quando eu estivesse de volta, mandar outro aceno. A senhora esta sempre me acenava com satisfação, um sorriso feliz na sua boca quase sem dentes, os dedos em garras me dizendo que sim, eu era uma garota legal. Ela costumava ficar sentadinha em uma cadeira na varanda, vendo o mundo passar, os vizinhos passarem, eu passar. E eu me perguntava o que os seus olhos enxergavam, se era beleza ou raiva, dor ou se tanto fazia. Vai ver que para ela o importante mesmo era estar viva entre as pessoas que a amavam.
Será que ela amou um homem algum dia? Qual a capacidade do seu coração para amar alguém da intensidade que eu também amo? E eu pensava e pensava e imaginava que aquele corpo retorcido jamais havia sentido um prazer carnal qualquer que fosse, que a sua vida iria passar em branco nesse aspecto e que coisa triste nunca ter tido uma boca para beijar, um corpo para se roçar, cabelos para desalinhar. Para que viver assim se a graça da vida é toda esta?
Aí um dia eu levei um pé na bunda de grandes proporções, um pé na bunda que me deixou descompensada, atordoada e uns três dias sem condições de pôr o pé para fora de casa e descobrir que havia vida fora do meu planeta devastado. No quarto dia pós pé na bunda, resolvi sair de casa para comprar alguma coisa para comer. Eu já tinha perdido três quilos, parecia um zumbi de olhos fundos de tanto chorar, mas eu não podia mais ficar em casa sofrendo. Assim que cheguei na calçada, a primeira pessoa que vi foi ela.
A senhora me abanou alegremente e fez um sinal perguntando por onde eu andava. Eu abanei rapidamente e segui em frente, com lágrimas nos olhos. Ela que era feliz, pensei eu. Ela que não tinha nenhum homem que lhe prometera amor eterno, era feliz consigo mesma e com seus defeitos incapacitantes. E eu segui em frente, com toda a minha perfeição, invejando a sua vidinha simples e sem pressa, eu que tinha tido atropelada por um caminhão e ainda juntava os cacos do meu coração.