Ser Companheira

O sol batia fortemente nas costas de Zito. Naquele dia parecia que o calor estava mais intenso e por nenhum momento a brisa veio amenizá-lo. Cada vez que afundava a enxada no chão, num movimento cadenciado, que produzia um “chap chap”, a terra quente cobria-lhe os pés descalços. Num reflexo instantâneo o pé direito era atirado para frente, como se fosse dar um chute e ela escorria rapidamente... De tempos em tempos, o “chap chap” era intercalado por um som estridente, provocado pelo atrito da enxada com algum cascalho. Esses sons eram os únicos que se ouviam naquela hora do dia. Provavelmente nem os pássaros estavam dispostos a premiá-lo com o seu canto relaxante.

Por breves instantes, Zito interrompia essa cadência para diminuir o ritmo acelerado de seu respirar e as batidas do coração. Escorava-se no cabo da enxada, passava as costas das mãos sobre a testa na tentativa de enxugar as gotas de suor. Elas escapavam-se rebeldemente, escorrendo pelo seu rosto magro. Consultava o céu procurando vestígios de uma nuvenzinha mais turva, mas só via o azul intenso. Esperara muito para preparar a terra e receava que as sementes do plantio não brotassem. Ele as comprara com muita dificuldade. Havia até tido problemas com a mulher por causa disto. Tentara explicar-lhe que poderiam abrir mão de muitas coisas, que ele considerava luxo, como o gás, o sabão em pó, o bombril e também alguns enlatados como sardinha, extrato de tomate... Ele achava um absurdo não utilizar o fogão à lenha, com tanta lenha apodrecendo nos pastos; não fazer sabão, com tantos coquinhos espalhados sob os coqueiros; não arear as panelas com as cinzas do fogão ou até mesmo a areia fina da beira do riacho. E quando ela, irritada, dizia que aquele sabão caseiro não limpava a roupa, ele ainda tinha outras sugestões para ajudar na lavagem das roupas. Falava dos ramos do São Caetano que se alastravam sobre as cercas. Explicava que era só esfregá-lo nas roupas úmidas, colocá-las para aquecer-se ao sol e depois enxaguá-las. Não entendia ter que comprar peixes, que ficavam enlatados por tanto tempo, se poderiam tê-los frescos pescados no riacho e, achava muito melhor, o molho de tomates de sua horta. Mas Lúcia não havia sido criada na roça e ficava revoltada com aquilo. Vivia reclamando da vida que levava e brigava com ele. Estava sempre indo com os filhos passar dias na casa da mãe dela na cidade. Quando voltava queixava-se mais ainda.

Zito pensava em tudo isso olhando o para o céu. A chuva tinha de ajudá-lo, pois se a colheita falhasse como ele ia aguentar a mulher falando-lhe na cabeça? Aqueles hectares, bons para a lavoura, tinham sido de seus pais. Os outros seus dois irmãos, também herdaram quantidade equivalente, mas venderam e seguiram outros destinos. Somente ele conservara o seu pedaço de chão. Tinha muito amor à terra, que o vira crescer e se transformar em homem. Nunca imaginara a vida em outro lugar, se identificava plenamente com as coisas do campo e tinha sonhos... Sim, tinha sonhos que acalentava, enquanto olhava os desenhos que a fumaça do seu cigarro de palha fazia no ar. Ainda ia conseguir adquirir algumas vacas para ter a renda do leite e quem sabe... fabricar queijos, fazer manteiga, requeijão. Sabia que produtos caseiros eram bem aceitos na cidade. Por isso sofria em seu coração quando a esposa comentava, ao ouvir falar dos “sem terra” no rádio: “Esse povo é louco! Não sabe o que é essa vida horrível e trabalhosa. Não tem coisa pior do que ficar preso a terra e dela ter que tirar o sustento.”

Vários dias se passaram... as sementes já estavam debaixo da terra, quando Zito ouviu o vento assobiando, viu as árvores curvando-se e o céu foi escurecendo... escurecendo... Um relâmpago riscou-o de fora a fora, com o um feixe de luz instantânea e a chuva despencou-se fortemente. Zito olhava a enxurrada escorrer com vontade, tomando o rumo do riacho, o coração batendo feliz .

Um semana depois, já era possível ver o resultado da abençoada chuva. As folhinhas verdes, com os grãos semi-abertos do feijão, já se exibiam sobre a terra úmida. As folhinhas do milho, que se assemelhavam a capim, estavam maiores que as do feijão. Viu também as outras culturas, que eram plantadas em pequena escala, pontilhando o chão com a cor da esperança. Numa explosão de infantil alegria Zito foi chamar Lúcia para ver também. Com visível desinteresse, ela falou: “Tenho coisas mais importantes para fazer do que ver plantas brotando”.

Zito ficou em silêncio sentindo a mágoa apertar-lhe o peito. Mas a sua plantação, como se tivesse ressentida também, reagia com todo vigor e crescia viçosa. Pouco depois, floriu, o milho pendoou, o feijão cobriu-se de vagens e chegou o dia da colheita, que foi muito promissora. Zito reservou o feijão para o consumo e após curti-lo com terra de formigueiro para protegê-lo do ataque dos besourinhos, ainda sobrou para a venda. O milho também rendeu muito e após tirar uma quantidade suficiente para tratar das galinhas e dos porquinhos até a próxima safra, conseguiu apurar dinheiro com o restante. Vendo aquela fartura, ele refletiu sobre o “Milagre da multiplicação dos pães”, que Jesus praticara. Percebeu que todas as vezes, que uma semente era lançada à terra e se transformava em vagens, em espigas, era como se o milagre continuasse acontecendo. Ficou admirado de nunca ter pensado nisso.

Num domingo, os pais e irmãos de Lúcia chegaram em sua casa. Falavam da crise que estavam vivendo. O pai dela estava desempregado, o irmão mais velho não conseguia emprego e passavam necessidades. Zito, ouvia tudo e olhava para seus filhos, agradecendo a Deus por eles nunca terem passado falta de alimento. Era verdade que cada um só tinha uma roupa melhor para ir à cidade, mas isso bastava, lá no meio do mato qualquer roupa servia; alimento que era importante para crescerem fortes, tinham sempre. Estavam sadios, corados...

O dia todo foi movimentado pela presença dos parentes. Os filhos de Zito conversavam o tempo todo com os avós, brincavam com os tios, que ainda eram adolescentes.

À tardinha, foram todos levá-los ao ponto de ônibus, que ficava a uns quatro quilômetros de distância. Zito viu Lúcia entregando aos seus pais, alguns quilos de feijão, juntamente com um pouco de cada variedade dos produtos da horta e uma embalagem de ovos.

O tempo foi passando, não tão rápido como passa na cidade, mas chegou novamente a época do plantio. Zito pegou a enxada, a cabaça d’água e foi para roça. Logo que iniciou, com muita energia, a cadência do “chap chap”, ouviu um ritmo fraco, descompassado, incerto... Olhou para sua esquerda e viu Lúcia, segurando o cabo da enxada muito desajeitadamente. Sorriu para ela com a alma cheia de gratidão e naquele momento, ele sentiu pela primeira vez, o que significava no matrimônio, o “ser companheira”.

Déa Miranda
Enviado por Déa Miranda em 25/11/2012
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