LIXO URBANO

Já estava amanhecendo, mas a festa estava longe de chegar ao fim.

Muita cerveja gelada, tira-gosto dos mais diversos, carne na churrasqueira improvisada no fundo do quintal, além dos muitos pratinhos com linguiça assada, cebola e farofa.

As vozes pastosas por conta das muitas horas de bebedeiras cantavam as melodias de sempre, perseguidas por um violão desafinado e o batuque de mãos nas mesinhas, colheres e caixas de fósforos, na vã tentativa de manter o ritmo, faziam a trilha sonora daquela festa em comemoração aos vinte e um anos de Francisco.

Todos os amigos de infância, colegas do grupo escolar, companheiros do serviço militar e ex-namoradas reunidos num só lugar para festejar o aniversário do jovem que sempre dizia que tinha vindo ao mundo em férias.

Francisco era amigo de todos e tratava a todos com a gentileza que caracterizava a sua personalidade.

Brincalhão e sempre disposto a qualquer coisa desde que não fosse ligada aos estudos porque, sempre detestara aquelas coisas que todos tinham que fazer.

Aquelas datas, aqueles nomes, aqueles números fizeram com que ele abandonasse o grupo escolar muito cedo e quando alguém falava no assunto, Francisco dizia:

- Até a metade do século passado a maioria das pessoas era analfabeta e estamos todos aqui, nem por isso o mundo acabou.

E quando a mãe citava os irmãos deles que estavam bem na vida ele dizia:

- Minha mãe, eu já estou sabido demais. Mais sabido do que eu ou é deputado em Brasília ou está morando no Aníbal Bruno*.

Meio cambaleante, Francisco, levantou da cadeira e disse, em tom de discurso.

- Meus queridos, o dever me chama. Se eu não for agora, a cabra vai comer meu cartão. Esperem por mim que logo mais estarei de volta para continuar a festa.

Francisco trabalhava na empresa de limpeza pública, era lixeiro, e não poderia deixar de ir, sob pena de ser despedido.

Pela baixa escolaridade que tinha, não podia correr esse risco, vez que para entrar lá, ele teve que usar uma prova escrita por um amigo do amigo, encarregado de aplicar o teste admissional.

Tomou um banho rápido, vestiu a farda de brim laranja com refletores cinza nas costas, peito, mangas e pernas das calças e foi se equilibrando na bicicleta nova, cumprir o roteiro de coletor de lixo, correndo atrás do caminhão basculante.

Rapidamente Francisco e os três colegas da turma encheram várias vezes o bagageiro do caminhão e as horas correram céleres.

Já perto do meio dia, nessa última viagem, se completariam as seis horas do expediente diário.

Numa das últimas ruas, no encontro de duas favelas, um saco de lixo preto se mexeu quando Francisco o apanhou do chão enlameado.

Entre surpreso e temeroso Francisco colocou o saco no chão e rasgou o plástico.

Dentro estava uma criança recém-nascida, com cordão umbilical, placenta e muito papel higiênico sujo de sangue e fezes.

Francisco apanhou a criança do chão, jogou fora os papeis sujos e enrolou o saco deixando de fora o rosto da criaturinha.

Com a criança no braço, entrou na cabine do caminhão e pediu ao motorista para levá-los para a policlínica no final da favela.

Aquele achado no dia do seu aniversário fez uma reviravolta no íntimo de Francisco que, na semana seguinte levou a menina para casa com a certidão de nascimento onde constava:

Certifico que no livro 306 de assentamentos de nascimentos, foi feito no dia dez do mês de outubro de 2040, o registro de FRANCISCA MEDEIROS DE MELO FILHA, do sexo feminino, de cor branca, nascida nesta cidade no dia 04 de outubro de 2040, às 11h30min horas, filha de Francisco Medeiros de Melo e de mãe desconhecida.

Foi declarante o genitor...

*

Aníbal Bruno = presídio instalado na periferia do Recife

Cabra que come cartão = Gíria de fábrica que indica demissão.