Plantão noturno.
 
Na porta havia um cartaz que identificava: SALA DOS RESIDENTES. Duas camas, uma mesa com um computador, uma televisão presa na parede. Tudo com muita simplicidade. Ali o plantonista descansava enquanto a emergência não o convocasse.
- Atenção Dr. Marcelo, compareça à sala da chefia, com urgência!
 
- "Urgência e emergência são as duas únicas palavras que sabem dizer aqui...Lá vou eu mais uma vez, o que será agora? Hoje não me deixaram descansar por quinze minutos sequer...", pensou Marcelo.
 
 
Quando chegou à sala do chefe, ela estava cheia, com os colegas de todas as espacialidades.
- Dr. Marcelo, o senhor foi o último a chegar, podemos começar nossa reunião?
Estamos em emergência, está havendo um incêndio na Favela do Matadouro... Vamos enviar três ambulâncias para lá, cada uma com um médico, um enfermeiro e um maqueiro.
Equipe nº 1: Dr. Marcelo, Enfermeira Mariana e maqueiro Jorge.
Equipe nº2: Dr. José Maria, Enfermeiro José Carlos e maqueiro Manoel.
Equipe nº3: Dra Sandra, Enfermeira Débora e maqueiro Antonio Carlos..
Podem partir imediatamente, os demais devem ficar preparados para atender queimados e intoxicados, podem ir para os seus postos,  vamos dar o melhor atendimento possível, estamos sob os olhos da Secretaria de Saúde e da mídia.
 
Dr. Marcelo sentou-se ao lado de Mariana enquanto o maqueiro Jorge ficava na parte de trás da ambulância. O motorista ligou a sirene e partiram.
Aquela observação do chefe, de que ele fora o último a chegar, incomodava-o, afinal, trabalhara durante seis horas seguidas sem parar, não sabia o que mais o importunava, se era a fome, ou o sono, não conseguira descansar nem um minuto, e recebia aquela observação de que fora o último a chegar...
"Você pode fazer 99,9%  certo, mas só observam o 0,1% do que você deixou de fazer...", voltou ele a pensar.

Sacrificava-se fazendo plantões em dois hospitais, pouca atenção podia dar para sua mulher, que também vivia para o seu trabalho de fonoaudiologia, sempre reclamando por não poder ter uma vida familiar satisfatória, acrescido pelo fato de não poderem ter filhos ... Ela queria ter uma vida  como a de  qualquer casal...
 
Quando chegaram na periferia da favela, já dava para se perceber os rolos de fumaça que desprendiam-se dos pneus queimados por manifestantes, os causadores do incêndio nas casas.  A fumaça tinha forte cheiro dos derivados de enxofre e ardiam os olhos dos quatro dentro da ambulância. Lá fora ouviam-se gritos e havia  correrias, a polícia tentava conter os ânimos exaltados dos reclamantes enquanto os bombeiros lançavam jatos d'água que nem sempre chegavam ao foco do incêndio. A ambulância, na tentativa de chegar mais perto do local, começou a deslizar seus pneus na lama formada e teve de recuar. Era a visão do inferno...
 
As labaredas já alcançavam o segundo quarteirão e os bombeiros não tinham acesso fácil ao foco da chama, o vento que soprava só fazia alastrar ainda mais o fogo, que em determinado momento chegou perto da ambulância.
Mariana entrou em pânico e teve uma crise convulsiva de choro... Era o caos, Dr. Marcelo e Jorge cuidavam para que ela se acalmasse e deram-lhe um medicamento.
 
Os bombeiros resgataram três pessoas de dentro de um barraco, duas mulheres e uma menina, todas desmaiadas.Segundo o relato do bombeiro que fez o resgate, uma das mulheres, que estava toda queimada, jogou seu corpo sobre a criança com o intuito de protegê-la das chamas.
 
Mariana, já refeita, ajudou a levá-las para a ambulância, e voltaram todos para o hospital porque o caso era grave. Todos receberam máscaras de oxigênio, uma das mulheres teve uma parada cardíaca que  Dr. Marcelo conseguiu reverter, mas logo em seguida teve uma segunda parada e chegou morta ao hospital. A segunda mulher com setenta e cinco por cento do corpo queimado, ficou internada na Unidade de Tratamento Intensivo e a menina, vítima de intoxicação, foi para a enfermaria infantil.
Dr. Marcelo, Mariana, Jorge e o motorista, voltaram para a favela e fizeram outros atendimentos.
 
Passados dois dias, Dr. Marcelo voltou para seu plantão e foi procurado pela Assistente Social. As duas mulheres haviam morrido, estavam irreconhecíveis e a garota estava em estado de choque. Ela queria saber se alguém havia dito o nome da menina, se sabiam de algum parente, porque ninguém a procurara no hospital. Ela aparentava ter sete anos de idade, não dizia seu nome, nem o nome da mãe ou do pai. Parecia estar em estado catatônico. Não sabiam o  que fazer com ela, porque suas funções vitais estavam perfeitas, mas não respondia aos estímulos, não perguntava nem respondia  nada.
-Seria bom o senhor passar na pediatria para vê-la...
- Embora não seja a minha área, vou passar por lá.
 
Quando o médico chegou, a menina estava em posição fetal, com o polegar direito na boca.
- Queridinha, eu estou aqui, falou carinhosamente ele, vim aqui para te ver, você não quer me dar um abraço?
Aqueles olhos inexpressivo se fixaram nos dele e em seguida se deu uma transformação, começaram a brilhar e ela sorriu.
Ele a segurou em seus braços, onde ela se aninhou, e chorou, não mais de medo ou de pavor, mas de segurança, de alegria. Pareciam pai e filha, uma forte emoção tomou conta de Marcelo, que também chorou.
A Assistente Social parecia não acreditar no que estava vendo... Tinham feito todas as tentativas para tirá-la daquele estado e não tinham obtido êxito.
 
Depois de dois anos sem que nenhum parente reclamasse pela menina, ela ganhou definitivamente um novo lar, o juiz os declarou pai e filha e ela recebeu um novo nome: Marcela!