Retrato
A imagem que ele vê é dos urubus devorando a carne de um desconhecido no lixão.
Desconhecido, inválido, a vida consumida na fome voraz das aves. Que não se envergonham de vasculhar o corpo, sem descobrir quem seja e se existe um ente querido pra velar os restos mortais. Não estão nem aí saciam o apetite a comer pedacinho por pedacinho.
No meio da visão crianças brincam tranquilamente como se no lixão encontrar um indivíduo morto era normal, coisa natural do ciclo da vida. Os adultos trabalham, de sol a sol, de frio a frio, mexem e remexem no entulho. De rostos sérios, concentrados, de suor escorrido na pele e pele queimada, magra, olhos grandes e secos. E se há energia pra cantar soltam a voz pra colorir e animar um pouco mais o ambiente. Claro, arrumar uma animação é impossível, porém o canto é uma boa solução para a distração.
Assistir os urubus saciar o estranho que não se sabe como morreu o deixa pensativo. Podia ser o corpo dele sendo devorado, fede aroma de carniça, é outro ciclo natural da vida. As aves necessitam contribuir com o efeito natural da natureza e ele necessita da náusea, repulsa e indignação com a cena. Elas poderiam alimentar da sua carne na frente de adultos e crianças. E arrancariam com bicadas grande pedaço da barriga e além dos mosquitos a rodear o rosto desenhando a mórbida existência do horripilante.
Desagradável imaginar almoçado pelas aves. Aparentava qual idade? Uns quarenta anos? Uma pessoa que alimentava de refeições pesadas. Feijoadas, churrascos, pizzas, almoço com frituras e um saciável copo de chope e cerveja.
Provavelmente tinha mulher, uma companheira e filhos. Ou de nada disso. Vivia sozinho, morava num fundo de uma casa alugando um quartinho que mal dava pra dormir em tempos de calor ou num apartamento espaçoso que com orgulho convidava belas ninfetas para noites de amor, bebidas e cigarros, uísque e Bacardi. Depois ao acordar o sol a bater de frente a enorme janela e ao fundo o quadro maravilhoso da praia.
E quem sabe não seria também catador de lixo encontrando no habitar natural o último suspiro de vida. Morreu no meio dos entulhos e monte de lixo. Feliz no ambiente que mais gostava.
Constata que o inválido não morrera alegre, o rosto de expressão de surpresa, uma réstia de pavor e medo de mínimas pinceladas. O cabelo liso loiro combinando com o vermelho do sangue que escorreu e manchou a face. De calça e sem sapato. A boca meio aberta preparada para exigir socorro, um grito, um único sinal de ajuda.
E morreu pra chegar ao ridículo destino: o corpo de refeição aos urubus.
Veio no lixão à toa. (o moço que vê os urubus devorando a carne de outro moço) À toa nada. Veio porque o local seria excelente para fotografar e criar sua exposição de fotografias. Sim, o moço é fotógrafo e não é famoso, quer montar sua primeira exposição com um trabalho inovador retratar nas imagens a vida dos catadores no lixão. Mora próximo, num condomínio de prédios de cor azul. Sozinho e solteiro, um típico tímido sonhador que se transferiu para a cidade grande pra tentar se tornar conhecido.
Busca o que veio buscar, mas não imaginou que encontraria algo tão repugnante: um homem morto. A sua volta o céu aberto, azul lindo, sol a castigar, sorte que passou protetor solar, senão anos mais tarde contrairá câncer de pele. O relógio marca onze e meia e ele chegou às dez e quinze. Não falou com ninguém, com catador nenhum, que também não deram atenção, acostumados às visitas de gente que olham e vão embora sem questionar se estão bem ou não. Pra eles um morto no local é coisa rotineira.
Desde que chegou não usou a câmera nenhuma vez. Perplexo com a cena fica imaginando mil vidas, mil diferentes mortes para o falecido. E não encontra vestígio de bala, faca, qualquer prova que pudesse matar a pessoa. Ele não é policial e não tem crédito pra desvendar qualquer pista na vítima. É ele, a máquina fotográfica, os urubus e o falecido. Pra melhorar o quadro adultos trabalhando e crianças brincando.
E imagina que o estranho pensava em realizações. Ou tivesse de realizações construídas. Universidade, viagem pra Europa, cruzeiro marítimo para alguma ilha famosa. Cargo de confiança numa importante empresa, se possível um sortudo casamento. E de sorte talvez fosse milionário da Mega-Sena ou do jogo do bicho. Jogou e deu justamente o bendito animal, bolada inteira dele. Quem sabe era traficante da região, que por azar foi raptado pelo rival e executado e jogado no lixão como inválido. Na região além de prédios dentro de condomínios existe favela dentro da cidade que todos fingem esquecer, aglomerados de gente de toda parte brasileira, mostrando cultura e história. Um cidadão simples que simplesmente dava um passeio no barzinho e encontrou com vagabundos e não se rendendo foi assassinado e desovado no lixão.
Sente uma esperança idiota que logo surgirá à namorada chorona, o patrão de carrancas duras, a mãe escandalosa que não admite ter perdido e clamará aos céus para que traga de volta o filho amado. O pai que em silêncio observará como um pensador a refletir sobre a vida e a morte, o cachorro de estimação, o papagaio e o amigo bobalhão da época da escola. E se arcanjos, anjos e flautas e harpas descessem nesse instante para levar aos altos céus do paraíso certamente de espanto não ficará. Como não assustará se a terra tremer e abrir buraco e dele surgir o tinhoso revelando sua sede e quiser levar o desconhecido pra baixo. E quem sabe haverá disputa. Entre o céu e o inferno, de anjo e demônio e sua máquina preparada pra focalizar cada ângulo, posição e assim preparar a sua desejada exposição.
E os catadores continuam. Choro de criança é alerta. Almoço. Quase meio-dia. Nessa hora o sol fica mais quente, mais terrível. As aves se alimentam. A alma do homem pra qual lugar viajou? Estivesse o tempo todo ao lado observando e constatando de que é muito horrível de se ver? Que olhos humanos desacostumados visualizarão para sempre? E o pessoal nem se dá conta de que é o horário do almoço. Esqueceram que também são esquecidos, que a fome mesmo que apertada e a sede mesmo que amarga não prevalecerá à disposição de continuar procurando nos entulhos uma troca de refeição, de roupa para a família, aluguel a pagar, um futuro digno para os filhos.
Outro pedaço arrancado. Ele afasta o rosto pra trás com repulsa. Falta tanta coisa, tanta coisa para o morto receber a sua paz. Que tristeza, que tristeza ter o próprio corpo consumido em pleno calor num lixão que a maioria finge em não saber que existe.
Uma menina aproxima e no jeito sapeca espanta as aves que protestando se dispersam a rodear do alto o almoço. Um menino também chega, talvez irmão da menina, são muitos parecidos. Olham o corpo, olhar normal, acostumado, de que não é novidade. Ela avista a máquina fotográfica e sem nenhum pingo de vergonha puxa o menino e colocando o braço no ombro do moleque diz:
- Moço. Tira uma foto nossa?
E eles abrem sorriso, de sujas carinhas, cabelo que não vê shampoo há meses, do alto as aves aguardam que a palhaçada termine.
Foco neles. Enquadra todos, um sincero zoom. E... Pronto!
Encontra a primeira foto para sua sonhada exposição.