NOVO ENDEREÇO
Novo endereço
Topam ir até São Matheus todos os dias, topam aguentar todos os dias o horário eleitoral sem mover um músculo, topam ficar durante cinquenta dias na fila do Inss, cinco horas por dia no plantão de hospital, ser gari durante seis meses, ficar dois dias num quarto escuro ouvindo quinze guaranias, dezessete canções alpinas, vinte e cinco árabes e cinquenta e seis japonesas?? Topam viver uma vez por ano, só ouvindo os outros, sem falar ”na minha opinião” ou “eu não disse?”, ou suarem a mesma calçinha e cueca durante seis meses (lavando à noite e usando pela manhã), o que me responderiam??
Tudo isso em troca de viver –ninguém me dá uma resposta – E o amigo, desses que ficam depois de enxurradas, está no hospital em estado gravíssimo. Sem aqueles dias onde a cicatriz se acomoda, o tecido renasce e colocamos os cobertores mofados sob o sol da esperança – para ele, só a espera do acordo final – e a dor – que fica ali, boiando nos seus olhos.
Medo espanto, dor e raiva – e uma afeição que fosse suficiente para que eu pudesse vencer a morte e sermos imortais . Olhando seu corpo descarnado pela injúria , sua dignidade amassada no chão junto ao esparadrapo e sua mente que flutua em espaço que não alcanço, vejo que sou uma jogadora inapta num xeque-mate que veio com a vida - nem mesmo serei espectadora de suas risadas escorregando por entre as conversas, seu olhar agudo e sua reconciliação com as mazelas despudoradas da vida – de sua raiva moralista em expressões contidas de desagrado - sua cólera – sua fé, sua mão que segurava o copo, o jornal, sua agenda. Nem isso. Alguns disseram que quem morre não mais existe e na esperança e ilusão de mantermos nossa própria imortalidade, tentamos eternizar quem se vai. Pergunto-me então contrariando esse raciocínio, que valor ainda possuem os que um dia nos cercaram e deixaram; tios, avó pais, mães, amigos, filhos e vão embora sem deixar o novo endereço ? No amor que repartiram em tantas fatias? Ou na raiva...que também repartiram num líquido escuro, às vezes, em xícaras tão pequenas e de tão fina porcelana que caíram e ficaram em caquinhos pelo chão! E, no fim da festa, a vassoura da vida limpou. Vocês todos que foram embora porque não deixaram o endereço de suas novas residências? Deus sabe.
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