OLHOS DE QUEM VÊ

O carro parou em frente ao portão de ferro pintado de preto. Um silêncio antes de descer do veículo. Bruno olhou para a mãe e Célia sentiu o momento do filho: Uma nova fase, um novo momento e uma nova escola. A terceira nos últimos quatro anos, fruto do trabalho do Marido, também Bruno, representante comercial conceituado de uma grande empresa que exigia mudanças constantes. Carinhosamente abraçou o filho que ainda em silêncio, tentou sorrir e saiu.

Bruno olhou em frente e se deparou com o prédio pintado de branco, em detalhes conservadores. O tradicional colégio, matinha há muitos anos, uma forte tradição religiosa. O vai e vem de jovens logo “conduziu” o adolescente até a entrada. Verificou com cuidado as placas sinalizadoras e chegou até a Diretoria. Lá uma bancada e uma mesa onde uma senhora morena, com feições finas escrevia algo num papel.

- Com licença.

- Sim...?

- Meu nome é Bruno Santos e hoje é meu primeiro dia aqui na escola.

- Sim Bruno, seja bem vindo (Disse num sorriso). Deixe-me ver aqui... Pronto. Bruno Santos (Falou colocando uma pasta sobre a mesa). Sua turma é a 2035. Sala três.

Bruno agradeceu e se dirigiu ao corredor. Andando em passos ligeiros logo chegou a uma curva e lá viu um grupo de três meninos chutando e xingando um outro. O agredido não reagia e não respondia as acusações, só tentava se proteger as muitas agressões. Até que um dos agressores reparou Bruno parado olhando a cena. Em silencio, sinalizou para os outros que olharam na mesma direção. Surpreendentemente pararam as agressões e saíram. Bruno se aproximou do agredido e perguntou:

- Está tudo bem?

O menino, moreno claro e cabelos ruivos, olhou para Bruno e respondeu um “sim” com a cabeça, enquanto levantava arrumava as roupas e saia rapidamente. Bruno acompanhou-o com o olhar e logo depois voltou a procurar a sala.

Até que chegou. Parou na porta e viu um senhor de meia idade arrumando os livros sobre uma mesa.

- Bom dia – Disse.

- Bom dia.

- Sala três? – Perguntou.

- Sim. Pode entrar.

Bruno entrou e ao olhar para o interior da sala, encontrou os meninos-agressores sentados em carteiras nos fundos. Sua surpresa maior foi ver, a frente na coluna da esquerda, o menino agredido, sentado na primeira carteira. Ignorou a constatação e depois de mostrar a documentação ao professor, procurou uma carteira vazia, sentou-se e viveu sua primeira aula no novo colégio.

Agressões num ambiente escolar não era uma novidade para Bruno. Já testemunhara e até participara de algumas. Mas no caso daquele menino, os dias mostraram que havia uma implicância especial por parte dos outros alunos.

Numa tarde, no horário do recreio, Bruno procurou se isolar sob a sombra de uma arvore frondosa que ficava logo na saída da escola. Sentou-se e pensou em mais esta mudança na sua vida. Mais uma vez deixou amizades, relacionamentos e amores na outra cidade. Só que, a cada mudança, doía mais e naquele momento sentia esta dor. De súbito, viu quando os três meninos agressores se aproximaram. Preparou-se para o encontro. Não brigaria, só se defenderia. A tensão durou até o grupo chegar bem próximo dele. Bruno olhou com firmeza e para a sua surpresa, um deles estendeu a mão e disse:

- Olá, meu nome é Marcelo. Este é Tom e este é o Zeca.

- Sim...

- Olha, não somos brigões. O que você viu foi um corretivo naquela aberração.

- Aberração?

- Sim. É o Vitinho. Ele é “mulherzinha”!

Bruno ficou mais surpreso ainda, mas ainda que instintivamente, justificou a atitude dos agressores.

- Entende porque batemos nele? É pra ver se ele toma vergonha na cara – Continuou Marcelo.

- Não sei se entendo, mas se é para corrigi-lo... Bem, sou Bruno.

- Tudo bem Bruno.

Desde aquele momento a integração passou a acontecer naturalmente e a vida seguiu seu rumo.

Vitinho era um menino diferente. Vivia constantemente sozinho. Quase não interagia com os outros alunos, porém era extremamente inteligente e responsável. As poucas vezes que alguém se dirigia a ele, encontrava sempre respostas educadas. Não praticava esportes e não acompanhava os meninos em suas brincadeiras. Seus hábitos eram delicados e simples. Seus gostos, diferentes, mas não eram excêntricos. Bruno reparava o colega com atenção, mas assumira também uma postura crítica em relação a ele, inclusive participando de algumas agressões. Numa delas, escreveu em letras garrafais a palavra “doente” e colocou na carteira que o menino sentava. Porém, Vitinho não reagia, simplesmente pegou a folha de papel, rasgou e jogou na lata de lixo. Era sempre assim: Silêncio. Até quando Marcelo acertou-lhe um soco que provocou uma mancha roxa do lado esquerdo do seu rosto. Não houve queixa nem discussão. Vitinho levantou e foi assistir à aula. Ao ser indagado, respondeu um “não” com a cabeça.

Uma tarde, ao chegar a casa, Bruno comentou com o pai sobre o colega. “Fique longe desta gente Bruno. Trata-se de uma vergonha” ouviu como resposta. A frase, trouxe a lembrança o rosto do colega e um sentimento estranho.

No domingo seguinte, durante o culto na igreja em que a família congregava, uma frase chamou a atenção de Bruno: “Amai uns aos outros, assim como vos amei”. Ao sair da reunião, Bruno perguntou ao pai:

- Aquela frase do sermão, se aplica a todos?

O pai olhou diretamente para o filho e respondeu solenemente:

- Sim, meu filho. A todos!

- Ao Vitinho também?

O pai mais uma vez olhou para o filho e respondeu rispidamente:

- Depende...

- Do quê?

- Dele.

- Dele... fazer o quê?

- Se arrepender, e chega desta história – disse o pai terminando a conversa.

Naquela noite, ao se deitar, Bruno pensou no sofrimento do colega: “Deve ser muito ruim viver como o Vitinho vive”; e prontamente decidiu não mais fazer parte das “brincadeiras” contra ele.

- Mas como não Bruno, você tem uma idéias legais...

- Não quero mais Marcelo. Deixa-o pra lá.

- E vamos deixar essa aberração ficar entre nós?

- Ele não se mete com ninguém...

- Mas nós somos salvos, religiosos, essa gente pode nos contaminar.

- Eu não quero mais – Concluiu Bruno na conversa do dia seguinte. E assim o fez. Simplesmente ignorou a situação.

Com o tempo soube que Vitor, tinha ingressado no colégio por méritos, conquistando o primeiro lugar para uma bolsa integral. Que a família dele era especial, só era ele e a mãe. Reparou que alguns professores disfarçavam suas opiniões sobre o menino e a impressão é que, quase, todos queriam Vitor fora daquela instituição. Porém, as notas do menino respondiam as aparências.

Numa tarde, Bruno corria contra o atraso para a aula de física. Dormira demais no intervalo. Numa curva do campus que dava acesso ao laboratório, tropeçou num pequeno galho e desabou no chão duro. O choque do joelho direito com a mureta, provocou uma dor terrível. Não tinha forças para pedir socorro e a área estava deserta. Foi quando ouviu:

- Você está bem?

Mesmo sem ver quem falava, respondeu um não com a cabeça.

- Vou buscar ajuda – disse a voz.

Em poucos minutos, Bruno estava assistido na enfermaria da escola. Viu quando a mãe, Célia, chegou e conversou com os enfermeiros e seguranças.

- Ele poderia ficar horas por lá, já que é um local de pouco acesso – disse um segurança.

- E como vocês o encontraram? - Perguntou a mãe.

- Um menino, viu quando ele caiu e nos alertou.

Célia se aproximou. Pôs uma das mãos sobre a perna enfaixada do filho, sorriu e perguntou se estava tudo bem. Bruno respondeu que sim. Ela então voltou a se dirigir ao segurança:

- Quero agradecer ao coleguinha que o encontrou.

- Vou busca-lo – Respondeu o segurança.

Minutos depois, Bruno e a mãe, viram Vitor entrar na sala.

Enquanto Célia agradecia, Vitor se mantinha quieto sem nada responder. Bruno estendeu uma das mãos. Vitor olhou assustado e lentamente estendeu a sua. Bruno sorriu. Vitor acenou com a cabeça. Célia beijou-o com carinho, provocando rubor no rosto branco. Vitor pediu licença e saiu. Bruno jamais esqueceu aquele momento. Sentiu a dor do arrependimento em lágrimas que molharam sua face. “Amai-vos uns aos outros”, foi o que disse em sussurros enquanto vivia aquele momento especial.

Dias depois, ao retirar o gesso, Bruno voltou ao colégio. Estava disposto a recomeçar com Vitor. Planejara ser amigo do rapaz. Independente das pessoas. Quem sabe convida-lo para ir a sua casa e depois a sua igreja? Com tais pensamentos chegou ao colégio. Porém ao entrar pelo portão sentiu um clima esquisito. As pessoas estavam sérias. Conversavam pelos cantos. De longe avistou Marcelo. Aproximou-se e viu o amigo cabisbaixo e com os olhos vermelhos de quem parecia ter chorado.

- Olá Marcelo?!

- Olá Bruno, melhorou? – Perguntou.

- Estou bem. E você?

- Pô cara! Não estou bem não! Acho que ninguém aqui.

- Por que? O que aconteceu?

- O Vitinho cara...

- O que tem o Vitinho?

- Ele se enforcou ontem. A mãe dele encontrou o corpo esta manhã. Ontem fizemos mais uma daquelas brincadeiras, só que desta vez ele reagiu, aí juntamos e batemos muito nele. Depois ele se foi, olhando de uma forma esquisita.

Bruno sentiu as lágrimas brotando. Não sabia o que fazer. Alías, sabia que não tinha mais o que fazer. Olhou de volta para Marcelo, com pena. Sentia o remorso do amigo. Não havia mais tempo para desfazer o mal. Não podiam voltar no tempo, e não havia mais... Tempo, a não ser para chorar.