O Sobrado

Era um sobrado de família, meu avô havia construído assim que se casou, passou para o meu pai e foi aqui que eu me criei, era uma casa grande pintada de azul, com um pequeno jardim onde minha falecida mãe cultivava algumas flores e ervas medicinais, na janela do andar de cima havia uma pequena varanda onde cabia uma mesa e uma cadeira, ali era o meu lugar favorito, tinha sombra e uma brisa maravilhosa, era um ótimo lugar para se ler, sim ali eu li diversas histórias, vi um lenhador que era nas horas vagas virava caçador, vi um pobre virar rico e um rico virar louco e vi alguém morrer esperando pelo amor. Havia uma praça bem de frente do meu sobrado, era a famosa praça central, nada demais, algumas árvores, alguns bancos, os velhos de sempre jogando dama, as crianças brincando, pessoas passando pra lá e pra cá, tudo muito normal, tudo nos seus conformes.

Um dia enquanto lia um livro na varanda, eis que ouço uma melodia muito peculiar, no exato momento em que minhas pernas tremem e um calafrio me vem da espinha até a nuca, havia algo na melodia não soube explicar o que, só estiquei a cabeça olhando de um lado para o outro tentando achar de onde vinham aquelas vibrações, mas havia dezenas de pessoas passando de um lado para o outro, olhei atentamente até que achei meu alvo, era uma garota, Sim era uma garota que estava sentada num banco bem no meio da praça, e esse banco dava justamente bem de frente da minha varanda, encostei-me no parapeito e fiquei escutando, toques graves, toques lentos, tentei de alguma forma criar uma caixa acústica com a minha imaginação para ver se isolava os sons que porventura pudessem me atrapalhar, reparei então que seus lábios pareciam sussurrar. Ah! Aquela distancia infernal que me fazia tão mal agora, não tinha certeza se era uma miragem ou uma constatação, mas eu juro que via os seus lábios se moverem a cada toque de suas mãos, queria ter escutado as palavras que ela estava a cantar, poderia ser algo de amor? Não! Sim? Não sei responder isso no momento, só sei que ela estava ali e eu estava ali de cima da varanda lhe observando enquanto ela ficava na mesma posição repetindo as mesmas notas, posso lhes confirmar que foram agradáveis trinta e sete minutos de uma plateia única, ouso dizer que só eu a escutava? Pois a julgar pelas pessoas que passavam era eu que lhe dava mais atenção no momento, de repente ela parou olhou envolta deu uma afinada no violão e recomeçou de onde havia parado, era seu bis para a plateia, sua última nota antes de se levantar e guarda o seu instrumento na capa, e eu ainda lhe olhando pedindo mais uma música com o meu olhar, mas ela parece não ter escutado, quando ela acabou de arrumar tudo tentei imaginar qual caminho ela iria pegar, se iria pela estrada dos afortunados ou se iria pela estrada das formosas, duas ruas distintas que receberam esses nomes não por acaso, está na cara que a área nobre era a rua dos afortunados e a rua das formosas era o lar das lindas mulheres do bairro, foi assim chamada há trinta anos e até agora condiz muito bem com o nome que lhe foi dado, deve haver alguma magia naquele solo, deve ser fértil em beleza só assim consigo explicar tamanha a beleza das suas mulheres, a instrumentista caminhou para direita, pode-se afirmar então que a mesma mora na rua dos afortunados, mas não me surpreenderia se ela se voltasse para a esquerda e se mostrasse uma das formosas, pois olhando suas curvas de longe não lhe achei nenhum mal, a moça caminhou alguns metros e sumiu na multidão a última coisa que me lembro de ter visto foi ela aparecer de repente entre as pessoas e entrar numa rua qualquer. Depois que a mesma se foi me senti um pouco abandonado, meu livro agora jazia em cima da mesa com o marcador fora da página e já era pôr do sol, senti uma gota d’água beijar o meu rosto e escorrer pelo mesmo, olhei para o céu e vi que iria chover naquela noite.

Durante a noite choveu assim como eu pressenti, uma nuvem vermelha contrastando com as luzes da cidade brilhava indecentemente no céu, era aquela nuvem a inimiga dos amantes? Ou podemos lhe descrever como uma aliada? Alguns namorados não se viram por culpa da mesma, mas alguns namorados agradeciam a ela por poderem dormir juntinhos, estando deitado na cama olhando os pingos baterem na minha porta, poderia por distração minha simplesmente fechar os olhos e jurar que estavam pedindo para entrar, mas igual se faz com testemunha de Jeová eu ignorei-os, virei e dormi.

Amanheceu e o sol tinha que me acordar como de costume, abri a porta da minha varanda e senti o cheiro de orvalho doce e molhado que já era por afortunado costume senti-lo todas as manhãs, o dia foi normal como todos os outros a única diferença era por ser um dia nublado e eu na mesma hora de costume exatamente após as quatro da tarde me sentei e fui ler, tinha a esperança que a moça do outro dia estivesse lá, queria vê-la de novo nem sei o porquê, só queria vê-la de novo. O livro ainda estava com o marcador fora de lugar, mas por sorte eu ainda tinha na memória a página em que estava lendo, li o primeiro parágrafo e quando iria virar a página olho para o banco onde ela estava sentada ontem e eis que para minha surpresa ela está lá, afinando o violão com a destra e para minha surpresa ela vira o violão, ela era canhota? Sim, canhota e só agora eu me lembro disso, eu a vi tocar do mesmo jeito ontem e isso passou despercebido por mim, olhei agora encantado com aquilo, mas antes dela começar a tocar, senti uma gota d’água mais uma vez beijar a minha face, acho que ela sentiu o mesmo, pois logo algumas gotas viraram uma grande chuva, como eu disse a mesma nuvem que é inimiga também pode ser aliada, pois ela sem pensar pega o violão e sem tempo de colocá-lo na capa sai correndo em disparada, nisso eu já estava voltando os meus olhos para o meu livro e apostava que como ontem ela iria sumir no meio das pessoas que alias eram poucas naquele dia de chuva, ela iria se virar na rua dos afortunados e iria sumir de novo. Mas não foi assim que aconteceu, ela correu em minha direção, ela estava com uma camisa preta e calça jeans, queria poder olhar seu rosto, mas ela estava com um capuz que cobria ate o seu cabelo, ela correu tentado achar abrigo e conseguiu achar bem debaixo da minha varanda, estiquei a cabeça tentando vê-la de todo o jeito, mas não consegui, enquanto eu pensava se deveria falar com ela ou não, ela pega o violão e começa a tocar, a chuva e as vibrações do seu instrumento entraram em sintonia, nada pude fazer a não ser agradecer a chuva por ter me feito tudo aquilo, ela passou o resto da tarde ali sentada tocando os mesmos acordes, acho que não devia ser a mesma música de ontem, embora fosse grave e no mesmo tom, ela não cantava, só repetia as mesmas notas sem variações, quando estava perto de escurecer ela se levantou, a chuva já havia cessado e já poderia ir embora em paz e foi isso que ela fez.

Depois desse fato fiquei sem ver a instrumentista durante duas semanas e nesse tempo de tanto olhar para a praça com a esperança de vê-la comecei a reparar nas pessoas que ali passavam, reparei que tinha um muambeiro chamado Gusmão que vendia tralhas e mais tralhas na praça bem debaixo da maior mangueira que havia no local, e esse mesmo muambeiro tinha um maldito habito de balançar os pulsos do braço destro e junto desse movimento suas pulseiras e relógios, ao todo dois relógios e quatro pulseiras de metal que faziam um som normal para aqueles que já estavam acostumados com aquele tique nervoso, mas para os desconhecidos aquele som com o tempo se tornava infernal, reparei numa senhora que se chamava Dolores, antiga moradora do bairro que devia ter mais de sessenta anos, nascida e crescida no mesmo bairro, estatura normal para alguém da sua idade, cabelos brancos com um pano na cabeça e um xale xadrez em seus ombros era a sua marca registrada, Dolores caminhava sempre às cinco da tarde, sempre na sua velocidade nem mais nem menos, andava com auxilio de uma bengala de madeira e dava exatamente oito voltas entorno da praça, devia ser algum tipo de fisioterapia ou simplesmente era para não entrevar, e quando a senhora Dolores acabava sua rotina de exercícios se sentava num banco e comprava água de coco na barraca do senhor Jaime, um senhor já com seus quarenta e nove anos, careca e com um cavanhaque, sempre com um lápis na ponta da orelha direita para quando precisar poder escrever, ouvi dizer que o senhor Jaime chegou do interior fazia bastante tempo e logo que chegou montou a barraca na praça e como não tinha outra para lhe ser concorrente ficou e fez sucesso logo de cara, na barraca sempre vemos um mendigo bebum que vive aporrinhando o senhor Jaime para que este lhe ceda uma garrafa de cachaça barata e de tanto tentar ele consegue e quando obtém sucesso mesmo manco de uma perna trata logo de ir para o outro lado da praça se sentar bem debaixo de uma oliveira, e por curiosidade do destino Oliveira é seu nome. Nessa hora eu ouço o senhor Jaime gritar...

- Ô Oliveira! Essa é a última viu?

E o Oliveira ia rindo sem nem ligar...

Durante esse tempo fiquei imaginando se a minha instrumentista iria voltar a tocar ali na praça. Na minha mesa agora tinha uma porção de pãezinhos de queijo e uma xícara de café, levantei a xícara de café e assoprei um pouco, ela ainda estava quente e dava pra ver o vapor se misturar com o ar, quando estava prestes a tomá-la escutei alguns acordes, era ela! Só podia ser ela, levantei-me bruscamente e olhei pela varanda dirigindo meu olhar para o banco onde de costume ela deveria sentar e nada vi, olhei então para todos os bancos da praça, mas ela não estava ali, mas ainda podia ouvir os acordes e na busca desesperada para saber de onde vinham as melodias tristes e pesadas graves e constantes olhei em cada canto da praça; vi Jose Roberto e Tassiane, um casal de namorados que estavam encostados numa mangueira se beijando, tinha um senhor vendedor de pipocas passando, esse era o senhor Porfírio, português que veio ainda criança para o Brasil, sete crianças brincavam de pique esconde, dois velhos caminhavam devagar e apontando para as crianças, era os senhores Roberval e Juvenal, ambos eram mecânicos aposentados, de certo uma das crianças era neto de um deles, o senhor Rufino, velho funcionário publico aposentado estava ali sentado como sempre, ele devia ser o melhor jogador de damas e xadrez do bairro, pois chegava exatamente às quatro e meia da tarde e só saia para ir à sua casa no fim da rua jantar e voltar para o segundo tempo, o senhor Costa era outro frequentador assíduo da praça, ele morava no final da rua ao lado do senhor Rufino e quando se encontravam o senhor Rufino e o senhor Costa tinha até plateia para ver esse embate dos gladiadores dos tabuleiros, dizem os boatos que até faíscas saiam quando eles acabavam suas jogadas, mas com tudo isso ainda podia ouvi-la tocando o seu instrumento, podia ser a minha imaginação? Acho que não.

Frustrado por não a encontrar apenas encostei minha testa nos meus pulsos e olhei para o chão e eis que vejo dois all star balançando pra lá e pra cá, as notas vinham dali, tão perto e tão longe ao mesmo tempo, ela estava sentada debaixo da minha varanda como fez no dia em que choveu, tentei me esticar mais uma vez para vê-la, mas vi que ela estava de capuz de novo, deve ser moda porque nem estava tão frio assim naquele dia. Fiquei em silêncio durante algum tempo, apenas escutando-a tocar, ate que eu resolvo falar.

- oi?

- hum – ela fica em silêncio.

- você toca bem, sabia? Você canta também?

Ela ainda ficava em silêncio, só me olhava e balançava a cabeça.

- acho que você não gosta muito de conversar. Eu tenho te visto tocar já tem bastante tempo, mas parece que você não gosta de plateia.

Ela ainda estava calada, isso já estava ficando humilhante, desci as escadas e sai de casa e falei mais uma vez.

- ei! É falta de educação fazer isso com as pessoas! – falei chegando perto dela e balançando-a pelo ombro, ela me olha assustada e nada responde apenas me olha com um olhar de medo, lagrimas começam a escorrer pelos seus olhos enquanto eu ainda a seguro pelo braço ela reluta tentando sair foi então que eu percebi o que era aquilo tudo, ela era muda! Eu a solto e ela sem perder tempo pega as suas coisas e vai embora. À noite me senti mal por tudo aquilo, não sabia que ela era muda, dormi mal, se é que consegui pregar os olhos à noite, mas resolvi que pediria desculpas para ela no dia seguinte.

Já era de tarde, quatro da tarde para ser mais exato, a vi chegar e começar afinar seu violão, não veio para debaixo da minha varanda, deve ter ficado ressentida ou com medo, mas não importava, de manhã comprei um buquê de rosas vermelhas que estavam no meu quarto e iria dar para ela como forma de pedir desculpas por ter sido tão rude com ela, quando a vi começar a tocar resolvi sair de casa com o buquê em mãos, fui andando passei pelo Gusmão, mas ele como sempre me ofereceu uma tralha de que não precisava, consegui me esquivar das investidas do vendedor e quase sou acertado por uma bola que fora chutada pelo neto do senhor Costa, dou uma rosa e um boa tarde para a senhora Dolores que estava sentada num banco esperando da a hora de fazer seus exercícios como de costume, até que chego perto da instrumentista, fico parado do seu lado com as rosas escondidas na minhas costas, reparei que ela havia ficado nervosa, pois parou de tocar e ficou fitando o chão, eu toco em seu ombro e ela olha para mim, de certo a minha visão deve ser bastante assustadora, pois assim que me viu apressou-se em querer guardar seus pertences e fugir, agora todos na praça olhavam aquela cena do menino em frente da menina com um buquê nas costas e a menina desastrada deixando o violão cair no chão, vendo aquilo eu tiro as rosas que estavam escondidas nas minhas costas e a entrego para ela, a pressa parece que caiu em terra nesse momento, seu nervosismo foi paralisado e tudo o que pude notar foi que ela abaixou a cabeça, alguns segundos às vezes parecem uma eternidade, de repente ela olha para mim e vejo seu olhos brilharem, parecia que eu tinha conseguido e a minha única reação foi sorrir.

Carlos Henrique de Azevedo
Enviado por Carlos Henrique de Azevedo em 18/11/2012
Reeditado em 23/11/2012
Código do texto: T3992114
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