Nos Bailes da Vida
As pessoas apinhadas nas calçadas esperavam ansiosas a chegada da fanfarra.
Crianças encantadas com os vendedores de algodão doce, cata-ventos, bolas multicores, brinquedos infláveis.
Os pais orgulhos esperando a chegada dos filhos no grande desfile cívico – a graciosas balizas davam o toque de magia precedendo a fanfarra, logo após o coral, em seguida as filas laterais dos alunos com os uniformes impecavelmente limpos.
Comandando o espetáculo dominical como nos três anos anteriores o Jovem Professor Fernando Celso, que no início
do desfile dizia orgulhoso ter sido aluno daquela escola.
Querido por todos ministrava aulas de educação física e instrumentos de percussão.
Para completar a brilhante Banda Marcial contava com a ajuda
do Maestro Pedro Ivo nas aulas de instrumentos de sopro.
Os alunos disputavam um lugar na banda, onde faziam parte somente os disciplinados nos estudos – como tudo na vida, seleção.
Dona Elvira, a merendeira não cabia em si.
Funcionária da escola desde o tempo em que ficara viúva, há mais de quinze anos dizia para todos com entusiasmo – sou
a mãe do Professor Fernando Celso.
Mulher guerreira atravessou vários obstáculos para criar a
prole de oito filhos – a mais velha com catorze anos de idade, desde que o marido se foi vítima de um fatídico acidente
quando retornava para casa.
Três cômodos sem reboco, no contra piso, janelas sem
vidros, mobiliário precário, quintal de chão batido.
No quarto amontoava dois beliches e um pequeno sofá,
onde dormia o mais novo que na época do falecimento do pai contava com apenas cinco anos.
A minúscula sala abrigava dois velhos sofás recebidos em doação, um televisor preto e branco apoiado na velha
camiseira, duas cadeirinhas e uma imagem de Nossa
Senhora Aparecida.
Nas paredes fotos amareladas abrigadas nas molduras
ovaladas, pintadas manualmente mostravam os pais e os
sogros de Dona Elvira.
Compadecidos desde que perceberam Dona Elvira sozinha
com as crianças e a magra pensão, ajudavam como
podiam – um pouco de alimento, algumas roupas,
brinquedos para as crianças.
A velha cerca de madeira mostrava entre vãos as crianças brincando com os dois cachorros da família e os poucos brinquedos quebrados– passavam horas sem a mãe,
desde que arrumou o emprego merendeira, cuidados
pela irmã mais velha, Denise.
Da prole Eliza a terceira filha, vitimada pela meningite
perto dos dois anos de idade, exigia cuidados extremos.
Imóvel no sofá da sala dependia da família para
tudo- sabia-se que estava vida pela frágil respiração,
alimentava-se através de uma sonda.
Antes de ir para o trabalho Dona Elvira dava o banho,
medicava, alimentava, em seguida deixava aos cuidados de Denise.
Eliza fisicamente tinha o desenvolvimento normal, já
aos dez anos de idade era difícil para a mãe cuidar
dela sozinha.
- Deus tudo sabe, repetia Dona Elvira com um sorriso
de fazer inveja emoldurado pela face morena.
Como trabalhava na escola acompanhava de perto o
rendimento escolar dos filhos, todos bons alunos - Celsinho
no entanto se destacava.
Participava de todas as atividades extracurriculares, especialmente as relacionadas ao esporte.
Antes mesmo de ingressar no ensino fundamental
acompanhava os três irmãos maiores nos eventos do colégio.
Indagado sobre o que queria estudar dizia – professor de esportes.
Aos nove anos entrou na Banda Marcial de onde nunca
mais saiu até se tornar o seu regente.
Determinado concluiu o ensino médio, prestou vestibular,
correu atrás de financiamento, matriculou-se na faculdade
de educação física.
No início das aulas percebendo seu desempenho um
dos professores convidou –o para ser monitor.
No segundo semestre estava estagiando em um
renomado colégio particular.
Dona Elvira passou neste meio de tempo por uma série
de problemas, dentre eles o agravamento do quadro de
saúde de Eliza e a saída de Denise de casa aos dezoito anos,ficando sem dar uma única notícia por mais
de cinco anos.
Um dia sem que esperasse apareceu na casa da mãe
com duas filhas, uma de três anos, a segunda ainda
bebê – mãe solteira vivia no litoral sul.
Após as lágrimas do reencontro a notícia – prostituta.
Uma semana na casa da mãe.
- Fica com as meninas pra mim mãe, preciso ir até
a farmácia, daqui a pouco volto....
Nunca mais voltou, deixando as filhas para a mãe criar.
As dificuldades foram superadas gradativamente, Samuel, Fernando Celso, Dulcilene, Marisa e o caçula Jaime – todos trabalhando.
Aos poucos a casa ampliada e acabada, a velha cerca
deu lugar ao muro de alvenaria.
Dona Elvira dividia-se agora entre o emprego, os cuidados
com a filha adoentada e as duas netas.
Família unida, aquele que estivesse em casa
ajudava na lida.
- Mãe, quero trabalhar na comunidade da igreja - disse
Fernando Celso na época que estava no segundo ano da faculdade.
Todos os domingos os irmãos seguiam para a missa das dez.
Sempre que havia encontro de casais na igreja Dona Elvira
lá estava ajudando na cozinha.
- Mas filho, você já tem tanto por fazer – a faculdade,
a fanfarra, o emprego, como vai arrumar tempo?
Mostrando o sorriso e a energia herdados da mãe Fernando Celso brincou....
- Calma Dona Elvira, temos que ajudar o próximo.
Trabalharei no grupo que faz palestra para os dependentes químicos.
De nada adiantaram os argumentos da mãe.
O entusiasmado jovem passou a dar palestras nos grupos
de recuperação.
No final da faculdade – o melhor aluno da turma.
Homenagens dos professores, dos colegas, da
família – Fernando Celso era como dizem os jovens
na linguagem atual o cara.
Dividia a jornada diária de trabalho entre a escola pública
onde a mãe trabalhava e o renomado Colégio.
- Érica, vou te apresentar para minha família, agora que terminamos a faculdade vamos oficializar nosso namoro.
A meiga professorinha de cabelos ruivos preparou-se
para o dia, adorou a família de Fernando Celso.
Planos, noivado, compra do pequeno apartamento
financiado a perder de vista, casamento marcado para
o ano seguinte.
O silêncio da madrugada foi cortado pelo ruído ensurdecedor
das sirenes.
Não demorou todos os moradores, antes das cinco horas
daquela manhã de domingo pendurados nas janelas para
saber o que havia ocorrido no pacato bairro.
- Um acidente!
Três viaturas na porta da casa de Dona Elvira.
Os vizinhos logo pensaram que se tratava da filha
desgarrada, a que deixara as filhas aos cuidados da mãe.
- O Professor sofreu um acidente!
Alguém gritou desesperado em meio ao barulho da sirenes.
O que deu pra ver foi a saída apressada de Dona Elvira acompanhada de dois dos filhos entrando em uma viatura.
Fernando Celso trabalhou a semana inteira ajudando
organizar a festa sertaneja para angariar fundos – faltavam menos de três meses para a esperada formatura no colégio estadual.
Antes de sair de casa no sábado pela manhã, foi até
a padaria, ajudou a dar o banho em Eliza.
- Mãe não me espera, depois do ensaio da fanfarra e
da palestra vou direto para a festa. Não se preocupe sei me cuidar.
A festa, como tudo que Fernando Celso participava um
sucesso!
A arrecadação superou as expectativas, formatura
garantida para os mais de trezentos alunos.
Celsinho, como a mãe carinhosamente o chamava ficou
com Érica até o final.
Repararam que uma aluna estava sozinha, passava das
duas da manhã.
- O que ocorreu Carol?
Não sei meu pai ficou de vir me buscar....
A menina residente em um bairro bastante afastado
aceitou de bom grado a carona do professor e sua noiva.
O percurso mais de uma hora.
Quando parou o carro para a aluna descer – o assalto.
Fernando Celso baleado nas costas, dois tiros atingiram
sua coluna.
Após o atendimento emergencial e uma série de exames
veio a trágica notícia, dada para a pobre mãe – seu filho está paraplégico, o quadro é irreversível – concluiu o médico neurologista.
O Colégio particular onde lecionava arcou com todos os
custos médicos hospitalares – atendimento de
primeiro mundo.
Fernando Celso acamado amparado pela noiva, com
a mãe sempre ao lado aparentemente recuperado falava
da fanfarra, da formatura, do trabalho voluntários,
dos planos para o casamento...
Os médicos autorizados pela família combinaram
que a informação quanto ao quadro clínico do jovem
seria passada para ele assim que percebessem a
recuperação da complexa cirurgia.
Até então Fernando era informado que seria mantido
na cama para a recuperação.
Estranhou o movimento no quarto na manhã ensolarada
de domingo – os médicos, dois amigos de infância,
a mãe, os irmãos Dulcilene e Samuel, a noiva e os
diretores dos colégios onde trabalhava.
Quando viu aquele monte de pessoas, Fernando Celso descortinou um sorriso dizendo em seguida....
Gente que alegria, sabia que era querido mais até ai
vir este tanto de gente para me buscar, demais viu!
Que felicidade!
Mãe, me da um abraço seu filho está feliz!
Vem Érica, vamos comemorar! Assim que ficar bom
vamos fazer aquela trilho do litoral novamente.
Gente quero ir embora, assim que o médico me
liberar par andar tenho que retomar os ensaios da fanfarra...
Os médicos habituados a lidar com o ser humano
nos momentos mais delicados não sabiam o que dizer...
Os presentes foram informados antes de adentrar
no quarto...
Fernando, precisamos falar com você – pronunciou
quase que sussurrando o chefe da equipe cirúrgica.
Quero que você ouça com atenção, para a medicina
nada é irreversível...
Acontece Fernando, que temporariamente você
não vai andar.
Fizemos todos os procedimentos, a cirurgia
bem sucedida.
No momento você não sentirá as pernas, não
controlará as funções quando as necessidades de usar o sanitário... só te pedimos calma, como lhe falei nada é irreversível, só que no momento Fernando temos
este desafio por superar.
E segundo nossas expectativas estaremos contigo
aqui no hospital por pelo menos mais sessenta dias.
Os presentes se amontoaram ao redor de Fernand
o tentando abraçá-lo, a mãe reuniu todas as forças
para dizer – filho você vai sair dessa!
O milagre não aconteceu.
O jovem maestro e professor estava paraplégico.
Recebeu uma alta hospitalar temporária uma semana
antes da formatura no colégio estadual - viu-se cadeirante
aos vinte e três anos.
Terminara ali a fanfarra, as aulas de educação física e
todas as atividades que exigissem deambulação.
Homenageado pelos formandos, aplaudido efusivamente
pelos familiares – grossas lágrimas verteram aos
olhos de todos.
Retornaria ao hospital após as festas natalinas – duas
cirurgias o aguardavam.
Entre hospitais e clínicas de recuperação mais um
ano afastado do convívio familiar, a última internação
quatro meses.
Fernando Celso era citado por todos como exemplo de perseverança, de garra e luta.
Dona Elvira, toda vez que havia uma solenidade no
colégio na apresentação da fanfarra era um choro só,
andava com o sorriso opaco.
Aparentava esmorecimento, a tragédia do filho
apagou a luz dos seus olhos.
Quando recebeu alta definitiva Fernando Celso,
aposentado por invalidez, retornou para a casa trazido por amigos em uma tarde de sábado.
As pessoas se aglomeravam na porta esperando o jovem professor.
Quando abriram as portas do veículo adaptado, dois
enfermeiros desceram a pesada cadeira de rodas.
Os jovens do grupo de oração, alguns professores,
familiares e vizinhos fizeram fila para cumprimentar
Fernando Celso.
Olha perdido, sorriso ausente, mãos fracas, notou a
ausência da noiva, nos três últimos meses alegando
trabalho e outros compromissos deixara d eir ao hospital,
apenas esparsos telefonemas.
- Mãe, preciso descansar, disse com um fio de voz.
Acenou suavemente para os amigos, recolheu-se na
casa agora adaptada.
Dona Elvira destruída por dentro aninhou-se na filharada,
nas duas netas, olhou para o céu murmurando baixinho
.....Deus sabe de todas as coisas....Deus sabe de
todas as coisas....
Preparou comidas preferidas de Fernando - risoto de
franco e panquecas de palmito.
- Mãe, não consigo cortar a comida, não dá mais
para usar o garfo, me arruma uma colher.
Claro filho, aqui está a colher, você é e será sempre
um vencedor meu filho, você estar vivo é a prova disso! T
Tudo vai passar....Deus sabe de todas as coisas...
A partir daquele dia, além de cuidar da filha acamada,
das duas netas pequenas, teria que se desdobrar com
os demais filhos para atender Fernando Celso.
Cadeira de banho, abertura da porta do banheiro, retirada da porta do quarto, cama com proteção lateral, fraldas...
Diariamente, antes de ir para o colégio onde trabalhava
como Merendeira despertava antes de o dia clarear para
deixar tudo encaminhado.
O passado visitava sem pena sua mente – inúmeras
vezes sonhava com o filho comandando a fanfarra.
Acordava aos prantos....
- Mãe porque a senhora acordou chorando, indagou
o filho...
Nada filho, tive um pesadelo – dezenas, centenas de
pesadelos onde as cenas se repetiam.
Celsinho, o que você acha de ir trabalhar lá na imobiliária
com a gente?
Não precisa ir o dia todo, venho te buscar aqui, assim
você não fica parado rapaz!
Pedrão, amigo da família de longa data tinha a
imobiliária em frente ao colégio.
Aceito!
Então, na segunda venho aqui logo após o almoço,
você fica conosco na parte da tarde.
Solidário como poucos Pedrão assumiu o compromisso
de diariamente ir buscar o jovem professor para
o novo emprego.
Fernando Celso ficava com o olhar fixo no colégio,
quando ouvia a algazarra dos alunos as lágrimas rolavam desmedidas.
As tardes, na saída do segundo período os alunos vinham
abraçá-lo – ritual diário.
Perto da Páscoa recebeu inúmeros cartões, chocolates,
abraços, e sorrisos tão sinceros que faziam sua alma emporariamente compreender a situação.
Fernando digitava alguns contratos, organizava papeis,
atendia ao telefone, anotava recados.
Jamais se separou da medalha recebida na formatura
com seu nome gravado, “Honra do Mérito, 1. Colocado
da Turma de Educação Física”.
- Érica raramente visitava Fernando, o romance esfriara.
- Precisamos acertar a nossa situação, amanhã passarei
na sua casa.
A voz fria nem de longe lembrava a namorada.
Érica havia mudado.
Fernando, preciso me dedicar ao mestrado.
Não dá mais para ficarmos juntos, não e por nada,
você é uma ótima pessoa, só que não dá....
Sobre o apartamento, coloquei a cota à venda, assim que aparecer um comprador nos falamos para dividir o dinheiro.
Diante de tanto sofrimento experimentado desde o
acidente Fernando ouviu, emendando com um está
bem...boa sorte Érica...
Os medicamentos fortes para controlar a ansiedade,
as dores habituais, a dor da alma....a dor das perdas...
Todos os sonhos sepultados na vala da tragédia...
- O que está acontecendo Mirtes, pergunta a diretora
do colégio para sua assistente sobre a Dona Elvira – havia
uma semana que não aparecia na escola.
- Dona Sônia, ela está doente. A filha dela, a professora Dulcilene, trouxe o atestado.
Na semana seguinte, novo atestado.
Dona Elvira estava com um grave problema renal.
Entrou para fila do transplante, hemodiálise três vezes por semana...
Não retornou para o colégio.
Menos de dois meses à partir do diagnóstico veio a
óbito – aos cinquenta e seis anos.
Samuel pediu a conta no emprego de Repositor para
cuidar de Fernando Celso e de Eliza, assim como
das sobrinhas.
Denise nunca mais deu notícias.
- Não quero ir para a imobiliária Pedrão, preciso dormir.
Após a morte da mãe Fernando Celso entrou em depressão.
- Samuel, arruma uma clínica para eu ficar, não quero dar trabalho, você tem sua vida meu irmão.
- Mas você pode levar uma vida normal Fernando, pára de bobagem, erga a cabeça, volte para a imobiliária.
- Não quero!
Os antigos colegas de profissão, a turma da fanfarra,
os amigos e os diretores dos colégios onde lecionara,
visitavam Fernando com frequência.
Como uma flor que dia a dia perde o viço Fernando gradativamente perdia o brilho.
Em razão do longo período acamado surgiram as
escaras nas costas.
Por determinação medica o colchão tradicional foi
trocado por um de água.
- Professor, estamos ensaiando para a formatura!
Nós queremos a sua presença, a turma da fanfarra
preparou um número especial em sua homenagem,
faltam apenas duas semanas professor!
Dizia o grupo de cinco alunos como entusiasmo próprio da adolescência.
Ah, e nós estamos preparando uma visita para aquela comunidade onde o senhor dava palestras, combinamos
de fazer uma festa de Natal para as crianças!
- Que bom...
- Fernando fitava longamente os alunos e na economia de palavras dizia....que bom...
Um fio de vida, sussurro de despedida.
A família acorda na madrugada com os gemidos de
Fernando queixando-se de dores insuportáveis.
Febre alta!
Samuel apressado aciona a ambulância do convênio.
Foram mais de dez dias de internação.
Fernando piorava dia a dia.
Cerrou os olhos na manhã de dezembro aos vinte e cinco
anos de idade...
Com a voz embargada no anoitecer daquele dia, Dona
Sônia, Diretora do Colégio sobe ao palco, pede que abram
o telão, nele aparece a foto de Fernando Celso sorridente conduzindo a fanfarra, portando no peito
a inseparável medalha.
- Antes de iniciarmos as solenidades da formatura desta
turma, agradecendo a Deus por vencermos esta etapa, peço
a todos que fiquem em pé para que possamos prestar
um minuto de silêncio em homenagem ao nosso querido Professor e Maestro, Fernando Celso.
Em seguida entra a entram as graciosas balizas
caminhando suavemente na frente da fanfarra....
O maestro respeitosamente indicou o lugar onde o grupo ficaria....
Após o Hino Nacional, a primeira música traduziu a
a emoção do momento....
- Amigo é coisa pra se guardar...do lado esquerdo
do peito....
(baseado em fatos reais)
(Ana Stoppa)
As pessoas apinhadas nas calçadas esperavam ansiosas a chegada da fanfarra.
Crianças encantadas com os vendedores de algodão doce, cata-ventos, bolas multicores, brinquedos infláveis.
Os pais orgulhos esperando a chegada dos filhos no grande desfile cívico – a graciosas balizas davam o toque de magia precedendo a fanfarra, logo após o coral, em seguida as filas laterais dos alunos com os uniformes impecavelmente limpos.
Comandando o espetáculo dominical como nos três anos anteriores o Jovem Professor Fernando Celso, que no início
do desfile dizia orgulhoso ter sido aluno daquela escola.
Querido por todos ministrava aulas de educação física e instrumentos de percussão.
Para completar a brilhante Banda Marcial contava com a ajuda
do Maestro Pedro Ivo nas aulas de instrumentos de sopro.
Os alunos disputavam um lugar na banda, onde faziam parte somente os disciplinados nos estudos – como tudo na vida, seleção.
Dona Elvira, a merendeira não cabia em si.
Funcionária da escola desde o tempo em que ficara viúva, há mais de quinze anos dizia para todos com entusiasmo – sou
a mãe do Professor Fernando Celso.
Mulher guerreira atravessou vários obstáculos para criar a
prole de oito filhos – a mais velha com catorze anos de idade, desde que o marido se foi vítima de um fatídico acidente
quando retornava para casa.
Três cômodos sem reboco, no contra piso, janelas sem
vidros, mobiliário precário, quintal de chão batido.
No quarto amontoava dois beliches e um pequeno sofá,
onde dormia o mais novo que na época do falecimento do pai contava com apenas cinco anos.
A minúscula sala abrigava dois velhos sofás recebidos em doação, um televisor preto e branco apoiado na velha
camiseira, duas cadeirinhas e uma imagem de Nossa
Senhora Aparecida.
Nas paredes fotos amareladas abrigadas nas molduras
ovaladas, pintadas manualmente mostravam os pais e os
sogros de Dona Elvira.
Compadecidos desde que perceberam Dona Elvira sozinha
com as crianças e a magra pensão, ajudavam como
podiam – um pouco de alimento, algumas roupas,
brinquedos para as crianças.
A velha cerca de madeira mostrava entre vãos as crianças brincando com os dois cachorros da família e os poucos brinquedos quebrados– passavam horas sem a mãe,
desde que arrumou o emprego merendeira, cuidados
pela irmã mais velha, Denise.
Da prole Eliza a terceira filha, vitimada pela meningite
perto dos dois anos de idade, exigia cuidados extremos.
Imóvel no sofá da sala dependia da família para
tudo- sabia-se que estava vida pela frágil respiração,
alimentava-se através de uma sonda.
Antes de ir para o trabalho Dona Elvira dava o banho,
medicava, alimentava, em seguida deixava aos cuidados de Denise.
Eliza fisicamente tinha o desenvolvimento normal, já
aos dez anos de idade era difícil para a mãe cuidar
dela sozinha.
- Deus tudo sabe, repetia Dona Elvira com um sorriso
de fazer inveja emoldurado pela face morena.
Como trabalhava na escola acompanhava de perto o
rendimento escolar dos filhos, todos bons alunos - Celsinho
no entanto se destacava.
Participava de todas as atividades extracurriculares, especialmente as relacionadas ao esporte.
Antes mesmo de ingressar no ensino fundamental
acompanhava os três irmãos maiores nos eventos do colégio.
Indagado sobre o que queria estudar dizia – professor de esportes.
Aos nove anos entrou na Banda Marcial de onde nunca
mais saiu até se tornar o seu regente.
Determinado concluiu o ensino médio, prestou vestibular,
correu atrás de financiamento, matriculou-se na faculdade
de educação física.
No início das aulas percebendo seu desempenho um
dos professores convidou –o para ser monitor.
No segundo semestre estava estagiando em um
renomado colégio particular.
Dona Elvira passou neste meio de tempo por uma série
de problemas, dentre eles o agravamento do quadro de
saúde de Eliza e a saída de Denise de casa aos dezoito anos,ficando sem dar uma única notícia por mais
de cinco anos.
Um dia sem que esperasse apareceu na casa da mãe
com duas filhas, uma de três anos, a segunda ainda
bebê – mãe solteira vivia no litoral sul.
Após as lágrimas do reencontro a notícia – prostituta.
Uma semana na casa da mãe.
- Fica com as meninas pra mim mãe, preciso ir até
a farmácia, daqui a pouco volto....
Nunca mais voltou, deixando as filhas para a mãe criar.
As dificuldades foram superadas gradativamente, Samuel, Fernando Celso, Dulcilene, Marisa e o caçula Jaime – todos trabalhando.
Aos poucos a casa ampliada e acabada, a velha cerca
deu lugar ao muro de alvenaria.
Dona Elvira dividia-se agora entre o emprego, os cuidados
com a filha adoentada e as duas netas.
Família unida, aquele que estivesse em casa
ajudava na lida.
- Mãe, quero trabalhar na comunidade da igreja - disse
Fernando Celso na época que estava no segundo ano da faculdade.
Todos os domingos os irmãos seguiam para a missa das dez.
Sempre que havia encontro de casais na igreja Dona Elvira
lá estava ajudando na cozinha.
- Mas filho, você já tem tanto por fazer – a faculdade,
a fanfarra, o emprego, como vai arrumar tempo?
Mostrando o sorriso e a energia herdados da mãe Fernando Celso brincou....
- Calma Dona Elvira, temos que ajudar o próximo.
Trabalharei no grupo que faz palestra para os dependentes químicos.
De nada adiantaram os argumentos da mãe.
O entusiasmado jovem passou a dar palestras nos grupos
de recuperação.
No final da faculdade – o melhor aluno da turma.
Homenagens dos professores, dos colegas, da
família – Fernando Celso era como dizem os jovens
na linguagem atual o cara.
Dividia a jornada diária de trabalho entre a escola pública
onde a mãe trabalhava e o renomado Colégio.
- Érica, vou te apresentar para minha família, agora que terminamos a faculdade vamos oficializar nosso namoro.
A meiga professorinha de cabelos ruivos preparou-se
para o dia, adorou a família de Fernando Celso.
Planos, noivado, compra do pequeno apartamento
financiado a perder de vista, casamento marcado para
o ano seguinte.
O silêncio da madrugada foi cortado pelo ruído ensurdecedor
das sirenes.
Não demorou todos os moradores, antes das cinco horas
daquela manhã de domingo pendurados nas janelas para
saber o que havia ocorrido no pacato bairro.
- Um acidente!
Três viaturas na porta da casa de Dona Elvira.
Os vizinhos logo pensaram que se tratava da filha
desgarrada, a que deixara as filhas aos cuidados da mãe.
- O Professor sofreu um acidente!
Alguém gritou desesperado em meio ao barulho da sirenes.
O que deu pra ver foi a saída apressada de Dona Elvira acompanhada de dois dos filhos entrando em uma viatura.
Fernando Celso trabalhou a semana inteira ajudando
organizar a festa sertaneja para angariar fundos – faltavam menos de três meses para a esperada formatura no colégio estadual.
Antes de sair de casa no sábado pela manhã, foi até
a padaria, ajudou a dar o banho em Eliza.
- Mãe não me espera, depois do ensaio da fanfarra e
da palestra vou direto para a festa. Não se preocupe sei me cuidar.
A festa, como tudo que Fernando Celso participava um
sucesso!
A arrecadação superou as expectativas, formatura
garantida para os mais de trezentos alunos.
Celsinho, como a mãe carinhosamente o chamava ficou
com Érica até o final.
Repararam que uma aluna estava sozinha, passava das
duas da manhã.
- O que ocorreu Carol?
Não sei meu pai ficou de vir me buscar....
A menina residente em um bairro bastante afastado
aceitou de bom grado a carona do professor e sua noiva.
O percurso mais de uma hora.
Quando parou o carro para a aluna descer – o assalto.
Fernando Celso baleado nas costas, dois tiros atingiram
sua coluna.
Após o atendimento emergencial e uma série de exames
veio a trágica notícia, dada para a pobre mãe – seu filho está paraplégico, o quadro é irreversível – concluiu o médico neurologista.
O Colégio particular onde lecionava arcou com todos os
custos médicos hospitalares – atendimento de
primeiro mundo.
Fernando Celso acamado amparado pela noiva, com
a mãe sempre ao lado aparentemente recuperado falava
da fanfarra, da formatura, do trabalho voluntários,
dos planos para o casamento...
Os médicos autorizados pela família combinaram
que a informação quanto ao quadro clínico do jovem
seria passada para ele assim que percebessem a
recuperação da complexa cirurgia.
Até então Fernando era informado que seria mantido
na cama para a recuperação.
Estranhou o movimento no quarto na manhã ensolarada
de domingo – os médicos, dois amigos de infância,
a mãe, os irmãos Dulcilene e Samuel, a noiva e os
diretores dos colégios onde trabalhava.
Quando viu aquele monte de pessoas, Fernando Celso descortinou um sorriso dizendo em seguida....
Gente que alegria, sabia que era querido mais até ai
vir este tanto de gente para me buscar, demais viu!
Que felicidade!
Mãe, me da um abraço seu filho está feliz!
Vem Érica, vamos comemorar! Assim que ficar bom
vamos fazer aquela trilho do litoral novamente.
Gente quero ir embora, assim que o médico me
liberar par andar tenho que retomar os ensaios da fanfarra...
Os médicos habituados a lidar com o ser humano
nos momentos mais delicados não sabiam o que dizer...
Os presentes foram informados antes de adentrar
no quarto...
Fernando, precisamos falar com você – pronunciou
quase que sussurrando o chefe da equipe cirúrgica.
Quero que você ouça com atenção, para a medicina
nada é irreversível...
Acontece Fernando, que temporariamente você
não vai andar.
Fizemos todos os procedimentos, a cirurgia
bem sucedida.
No momento você não sentirá as pernas, não
controlará as funções quando as necessidades de usar o sanitário... só te pedimos calma, como lhe falei nada é irreversível, só que no momento Fernando temos
este desafio por superar.
E segundo nossas expectativas estaremos contigo
aqui no hospital por pelo menos mais sessenta dias.
Os presentes se amontoaram ao redor de Fernand
o tentando abraçá-lo, a mãe reuniu todas as forças
para dizer – filho você vai sair dessa!
O milagre não aconteceu.
O jovem maestro e professor estava paraplégico.
Recebeu uma alta hospitalar temporária uma semana
antes da formatura no colégio estadual - viu-se cadeirante
aos vinte e três anos.
Terminara ali a fanfarra, as aulas de educação física e
todas as atividades que exigissem deambulação.
Homenageado pelos formandos, aplaudido efusivamente
pelos familiares – grossas lágrimas verteram aos
olhos de todos.
Retornaria ao hospital após as festas natalinas – duas
cirurgias o aguardavam.
Entre hospitais e clínicas de recuperação mais um
ano afastado do convívio familiar, a última internação
quatro meses.
Fernando Celso era citado por todos como exemplo de perseverança, de garra e luta.
Dona Elvira, toda vez que havia uma solenidade no
colégio na apresentação da fanfarra era um choro só,
andava com o sorriso opaco.
Aparentava esmorecimento, a tragédia do filho
apagou a luz dos seus olhos.
Quando recebeu alta definitiva Fernando Celso,
aposentado por invalidez, retornou para a casa trazido por amigos em uma tarde de sábado.
As pessoas se aglomeravam na porta esperando o jovem professor.
Quando abriram as portas do veículo adaptado, dois
enfermeiros desceram a pesada cadeira de rodas.
Os jovens do grupo de oração, alguns professores,
familiares e vizinhos fizeram fila para cumprimentar
Fernando Celso.
Olha perdido, sorriso ausente, mãos fracas, notou a
ausência da noiva, nos três últimos meses alegando
trabalho e outros compromissos deixara d eir ao hospital,
apenas esparsos telefonemas.
- Mãe, preciso descansar, disse com um fio de voz.
Acenou suavemente para os amigos, recolheu-se na
casa agora adaptada.
Dona Elvira destruída por dentro aninhou-se na filharada,
nas duas netas, olhou para o céu murmurando baixinho
.....Deus sabe de todas as coisas....Deus sabe de
todas as coisas....
Preparou comidas preferidas de Fernando - risoto de
franco e panquecas de palmito.
- Mãe, não consigo cortar a comida, não dá mais
para usar o garfo, me arruma uma colher.
Claro filho, aqui está a colher, você é e será sempre
um vencedor meu filho, você estar vivo é a prova disso! T
Tudo vai passar....Deus sabe de todas as coisas...
A partir daquele dia, além de cuidar da filha acamada,
das duas netas pequenas, teria que se desdobrar com
os demais filhos para atender Fernando Celso.
Cadeira de banho, abertura da porta do banheiro, retirada da porta do quarto, cama com proteção lateral, fraldas...
Diariamente, antes de ir para o colégio onde trabalhava
como Merendeira despertava antes de o dia clarear para
deixar tudo encaminhado.
O passado visitava sem pena sua mente – inúmeras
vezes sonhava com o filho comandando a fanfarra.
Acordava aos prantos....
- Mãe porque a senhora acordou chorando, indagou
o filho...
Nada filho, tive um pesadelo – dezenas, centenas de
pesadelos onde as cenas se repetiam.
Celsinho, o que você acha de ir trabalhar lá na imobiliária
com a gente?
Não precisa ir o dia todo, venho te buscar aqui, assim
você não fica parado rapaz!
Pedrão, amigo da família de longa data tinha a
imobiliária em frente ao colégio.
Aceito!
Então, na segunda venho aqui logo após o almoço,
você fica conosco na parte da tarde.
Solidário como poucos Pedrão assumiu o compromisso
de diariamente ir buscar o jovem professor para
o novo emprego.
Fernando Celso ficava com o olhar fixo no colégio,
quando ouvia a algazarra dos alunos as lágrimas rolavam desmedidas.
As tardes, na saída do segundo período os alunos vinham
abraçá-lo – ritual diário.
Perto da Páscoa recebeu inúmeros cartões, chocolates,
abraços, e sorrisos tão sinceros que faziam sua alma emporariamente compreender a situação.
Fernando digitava alguns contratos, organizava papeis,
atendia ao telefone, anotava recados.
Jamais se separou da medalha recebida na formatura
com seu nome gravado, “Honra do Mérito, 1. Colocado
da Turma de Educação Física”.
- Érica raramente visitava Fernando, o romance esfriara.
- Precisamos acertar a nossa situação, amanhã passarei
na sua casa.
A voz fria nem de longe lembrava a namorada.
Érica havia mudado.
Fernando, preciso me dedicar ao mestrado.
Não dá mais para ficarmos juntos, não e por nada,
você é uma ótima pessoa, só que não dá....
Sobre o apartamento, coloquei a cota à venda, assim que aparecer um comprador nos falamos para dividir o dinheiro.
Diante de tanto sofrimento experimentado desde o
acidente Fernando ouviu, emendando com um está
bem...boa sorte Érica...
Os medicamentos fortes para controlar a ansiedade,
as dores habituais, a dor da alma....a dor das perdas...
Todos os sonhos sepultados na vala da tragédia...
- O que está acontecendo Mirtes, pergunta a diretora
do colégio para sua assistente sobre a Dona Elvira – havia
uma semana que não aparecia na escola.
- Dona Sônia, ela está doente. A filha dela, a professora Dulcilene, trouxe o atestado.
Na semana seguinte, novo atestado.
Dona Elvira estava com um grave problema renal.
Entrou para fila do transplante, hemodiálise três vezes por semana...
Não retornou para o colégio.
Menos de dois meses à partir do diagnóstico veio a
óbito – aos cinquenta e seis anos.
Samuel pediu a conta no emprego de Repositor para
cuidar de Fernando Celso e de Eliza, assim como
das sobrinhas.
Denise nunca mais deu notícias.
- Não quero ir para a imobiliária Pedrão, preciso dormir.
Após a morte da mãe Fernando Celso entrou em depressão.
- Samuel, arruma uma clínica para eu ficar, não quero dar trabalho, você tem sua vida meu irmão.
- Mas você pode levar uma vida normal Fernando, pára de bobagem, erga a cabeça, volte para a imobiliária.
- Não quero!
Os antigos colegas de profissão, a turma da fanfarra,
os amigos e os diretores dos colégios onde lecionara,
visitavam Fernando com frequência.
Como uma flor que dia a dia perde o viço Fernando gradativamente perdia o brilho.
Em razão do longo período acamado surgiram as
escaras nas costas.
Por determinação medica o colchão tradicional foi
trocado por um de água.
- Professor, estamos ensaiando para a formatura!
Nós queremos a sua presença, a turma da fanfarra
preparou um número especial em sua homenagem,
faltam apenas duas semanas professor!
Dizia o grupo de cinco alunos como entusiasmo próprio da adolescência.
Ah, e nós estamos preparando uma visita para aquela comunidade onde o senhor dava palestras, combinamos
de fazer uma festa de Natal para as crianças!
- Que bom...
- Fernando fitava longamente os alunos e na economia de palavras dizia....que bom...
Um fio de vida, sussurro de despedida.
A família acorda na madrugada com os gemidos de
Fernando queixando-se de dores insuportáveis.
Febre alta!
Samuel apressado aciona a ambulância do convênio.
Foram mais de dez dias de internação.
Fernando piorava dia a dia.
Cerrou os olhos na manhã de dezembro aos vinte e cinco
anos de idade...
Com a voz embargada no anoitecer daquele dia, Dona
Sônia, Diretora do Colégio sobe ao palco, pede que abram
o telão, nele aparece a foto de Fernando Celso sorridente conduzindo a fanfarra, portando no peito
a inseparável medalha.
- Antes de iniciarmos as solenidades da formatura desta
turma, agradecendo a Deus por vencermos esta etapa, peço
a todos que fiquem em pé para que possamos prestar
um minuto de silêncio em homenagem ao nosso querido Professor e Maestro, Fernando Celso.
Em seguida entra a entram as graciosas balizas
caminhando suavemente na frente da fanfarra....
O maestro respeitosamente indicou o lugar onde o grupo ficaria....
Após o Hino Nacional, a primeira música traduziu a
a emoção do momento....
- Amigo é coisa pra se guardar...do lado esquerdo
do peito....
(baseado em fatos reais)
(Ana Stoppa)