= PASSEIO NOTURNO =

"PASSEIO NOTURNO..."

Dedico este conto ao amigo LUIZ COELHO, escritor talentoso, nascido em Niterói, que durante um bom tempo da minha vida, acreditou e me incentivou na arte de escrever.

Em 21 de agosto de 2009

Ronaldo Trigueiros Lima

(PRÓLOGO)

Por sentir-me sufocado por tantas coisas, deixava-me levar a esmo pelo velho “fusquinha”, presente de uma tia querida no dia do seu próprio aniversário. Acostumei-me assim, por algum tempo, por precisão do momento, a ir para parte antiga da cidade. Gostava de ficar em frente à estação hidroviária, na Praça Arariboia, reduto de intelectuais e outros tipos de pessoas que pareciam marcar plantões em diferentes horários conforme identificação e interesses. Na verdade, nunca me identifiquei com nenhum grupo. Rodava de carro por algumas ruas centrais, esperando a hora certa de encostar o automóvel num canto qualquer, para logo após sentar-me em um banco na procura do nada misterioso que acende a curiosidade. Por muitas vezes fiz isso, por muitas vezes mesmo.

Para que tudo fique mais claro, preciso ir direto ao assunto. Sou um autor a procura da personagem. Um escritor na busca do seu texto.

Sendo assim, deixei-me atrair pela praça anoitecida. Com o gosto de observar o vai e vem de pessoas que carregam expectativas diferentes. Gente sem rostos, alheia ao espaço que atravessa. Completamente mergulhada dentro dos seus mundinhos aparentemente limitados. Pessoas que “cortam” a praça em rotineiros passos, sempre chegando, sempre partindo. Num repente, surgem em profusão, cancela aberta, como gado em correria e desaparecem para voltarem no outro dia com as mesmas perspectivas estreitas. Esse ir e vir de pêndulo que a dinâmica aos poucos modifica, não os transformam, não os fazem menos, ou mais infelizes do que imagino que sejam.

Entretanto, quando o fluxo do trânsito diminui, a praça muda de roupa, vai sendo ocupada por novos rostos, por frequentadores noturnos que fomentam nuancem e outras idéias.

Essa capacidade de observação abriu-me a possibilidade de arrancar desse ambiente a inspiração necessária para escrever este CONTO.

I

Uma dada ocasião pude perceber em um ponto da praça, alguns frequentadores singulares que sempre se encontravam as mesmas horas, nos mesmos bancos. Eram pessoas estranhas, exóticas, ora muito falantes e expressivas, ora completamente silentes e mergulhadas. Um grupo de idades contrastantes, formado por pseudo-intelectuais, “underground” não convencidos que ficariam balizados e conhecidos como “Clube dos Morcegos”.

Ora, disse cá comigo, eis aí uma reunião de pessoas exóticas que excita minha curiosidade. Um grupo estranho, meio gótico, formado por “cineasta”, “poeta”, “romancista”, “crítico de teatro”, “escultor”, e outros tantos. A mais “fina nata marginal” da pseudo-arte fluminense, segundo afirmação própria deles mesmos... Dessa forma, ali reunidos, transformavam a praça em uma “Academia” a céu aberto sob o sereno da madrugada.

Com o decorrer dos dias; isto é, das noites subsequentes, fui perdendo a timidez a ponto de ser tolerado junto aquele grupo fechado como um dos ouvintes. A princípio me tornei mero expectador cordato. Um intruso sempre pronto a assistir “enquadramentos” alucinantes descritos pelo cineasta de um filme imaginável, cujo roteiro era geralmente modificado a cada reunião do clube.

Assim sendo, não mais que de repente, alem do cineasta, de forma contrita e dramática, o silêncio era fuzilado pelos versos brancos, compostos e ditos pelo poeta metafísico em seu improviso instantâneo sob o olhar de aprovação unânime. Ou, imaginar esculturas e pinturas idealizadas por obras quiçá começadas por algum motivo o outro.

- Somos todos potencialmente artistas de respeito. “Marginais”sim, mas por escolha, discordantes desse padrão “cartesiano”,dessa ditadura de críticos acomodados e tradicionais, que preferem o estabelecido a arriscar-se aos novos caminhos que se abrem em tempos de transição. Disse o cineasta a todo o pulmão, sob aplausos efusivos, na certeza do seu poder de convencimento. Logo em seguida, exigia concentração absoluta para que os curiosos e os partícipes, pudessem visualizar dentro da narrativa, o filme que ele produzia e exibia simultaneamente no “écran fictício do instante”.

Um profundo silêncio desabava naquele momento, sobre os poucos “associados”,ou ouvintes convictos do Clube dos Morcegos que nessa altura já se encontravam completamente hipnotizados, fanaticamente entregues.

- O filme inicia com um plano geral de planície no auge do entardecer. Um vulto em silhueta, montado em um pangaré, aproxima-se lentamente na direção da câmera. Dentro desse ambiente de vento e sons misturados, uma névoa de poeira e feixe de capim seco, rola no primeiro plano.

Pouco a pouco, o cavaleiro solitário de cabeça baixa envolta a uma larga capa negra e profundo capuz a cobrir-lhe a face, contrapondo-se a luz do crepúsculo, como um ponto negro a trotear sem nenhuma pressa, aproximava-se misteriosamente como um Don Quixote às avessas...

- Não tinha face?

- Nenhum semblante?

- Nem tanto como um Dom Quixote, “cavaleiro da triste figura...?” Nem tanto, mas talvez como ele, ao aperceber-se do fim, da loucura do fim, quisesse ceifar todas as injustiças que se lhe fechava horizontes nunca conquistados.

- Nem em sonho possuído? Perguntou o escritor com o disfarce da pergunta.

- Talvez quisesse, com sua lança em riste, derrubar obstáculos que se apresentava como o grande espelho da inutilidade de sua vida a varar a dor do nada, e apercebendo-se do pouco que contivera de sanidade, instintivamente descobre que a vida vale pelo amor que pouco tivera.

- Mas quem é esse personagem que no capuz o rosto esconde e que troteia pela planície ressecada, que mete medo, ou provoca risos a quem lhe deita a vista? Quem tão sozinho assim perpassa sem que tenha o rosto amigo a dividir percalços? Completou o crítico de teatro, a quem chamavam de A. Lúcio.

- Nada que valha a pena ser lembrado Uma fraude, uma mentira, um engodo. Alguém que passa devagar com seus guardados, um fantasma talvez dos seus próprios sonhos. Retruca o cineasta aos “berros sufocado.”

Fiquei ali ouvindo a conversação intensa que aos poucos varava a noite cada vez mais silenciosa, interrompida de quando em vez, pelo barulho de passos apressados que desembocavam na praça, geralmente de hora em hora, conforme a chegada das lanchas que vinham do Rio de Janeiro.

Na minha cabeça dançavam pensamentos gravados, descontínuos; enquanto a massa desembarcada feria o silêncio da noite que já ia alta. Talvez quisesse rever naquele agito, a ansiedade de “Zé Mário”, o dito escultor do “Clube dos Morcegos” que como nas outras noites, aguardava certa “tribo” de adolescente acostumada a desembocar por volta daquele horário, chefiada por um rapazola louro sem camisa, cabelo enrolado, tal “David” de Miguel Ângelo, pronto para ser o desejado modelo da escultura nunca começada.

Assim, olhar fixo nos passageiros que por ali transitavam, Zé Mário esperou em vão pelas horas que se seguiram por diferentes levas de passageiros, até que o último cigarro queimasse. Alheio a narrativa do cineasta, permaneceu paralisado, atento, enquanto instintivamente procurava em vão por “bingas de cigarros” que ele mesmo havia atirado ao chão. Foi aí que notou a minha presença, e sem cerimônia, após sentar-se ao meu lado, queixou-se sem parar do atraso constante das lanchas durante a madrugada, culpando-as pelos desencontros com o “garoto capoeirista”, o tal “modelo ideal” que já dava como certo, e que iria lhe facilitar finalmente o esboço da escultura desnuda e miserável de um “David niteroiense”, cujo atraso seria responsável por todas as suas noites de insônia. Dessa maneira, era extremamente necessário, vital mesmo, concretizar a obra. Esculpir na pedra o seu “EU profundo”. Dar-lhe alma, dar-lhe vida, imortalizá-lo e puder gritar finalmente como fizera o Miguel Ângelo não tupiniquim em plena Renascença: -“PARLA!” -” PARLA!”

No entanto, minutos depois, ficou sabendo por um outro capoeirista, que o tal rapaz escolhido, teria sido assassinado, o que fez Zé Mario assustar meio mundo com um grito repentino e estridente, obrigando A. Lúcio, crítico teatral e presidente do “Clube dos Morcegos”, a intervir,impondo intempestivamente para nós outros desconcentrados e distraídos, para que voltássemos nossa atenção à narrativa épica do cineasta, exigindo dessa maneira, que fosse restabelecido o rigor do regulamento do “Clube”, que obrigava os partícipes, total sintonia com o artista da noite.

Foi aí nesse ponto, por sentir-me satisfeito e sonolento, que achei por bem deixar a praça e voltar para casa.

Niterói, agosto de 2009

Ronaldo Trigueiros Lima

RONALDO TRIGUEIROS LIMA
Enviado por RONALDO TRIGUEIROS LIMA em 10/11/2012
Reeditado em 14/11/2012
Código do texto: T3979133
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