Dona Paula e seu papagaio

Dona Paula, senhora distinta, beirando os setenta, católica fervorosa, esposa de seu Martiniano, senhor de mais de oitenta anos de idade, firme nas passadas, cultivava boa prosa, eram nossos vizinhos. Com eles moravam uma senhora de nome Jandira, também muito católica, uma menina para serviços menores, ligeira como a peste, e um papagaio, conhecido pelo codinome louro, ave pertencente à ordem dos Psitaciformes, família Psittacidae. Uma característica singular desse papagaio era que ele imitava a fala humana, cantando cantigas católicas e recitava, sem erro, os nomes de todos os moradores daquela casa, até mesmo dos filhos, netos, noras e alguns outros parentes que não residiam em companhia de dona Paula. Às vezes, ele também repetia palavras soltas que ouvia alguém falar, demonstrando alta e rápida capacidade de aprendizagem.

Esse papagaio era a alegria da casa, das visitas de dona Paula e de seus vizinhos. De nossa casa ouvíamos tudo o que ele dizia, pois morávamos parede com parede, casa geminada. Gostávamos de gritar palavras para ele repetir, assoviar para ele responder, fazíamos tanto isso que dona Paula se irritava e mandava colocar o papagaio para dentro de casa. Sua gaiola ficava sempre pendurada em um dos galhos do pé de seriguela, Spondias purpura, árvore da família das anardaiáceas, plantada no quintal da casa. Ele passava o dia todo cantando, falando, assoviando, gritando, uma barulheira infernal, que também nos irritava muito.

Certo dia flagrei um de meus irmão sentado sobre o muro que separava os dois quintais. Ele ensinava ao papagaio a cantar cantigas de duplo sentido e a proferir palavras imorais, como se dizia antigamente. Quando o louro começava a cantar as cantigas católicas, o mano mandava palavras atentatórias à moral pública, ao recato, ao pudor, palavras indecentes.

Sempre que meu irmão dizia uma nova palavra, o papagaio ficava confuso, parava de cantar por alguns instantes, recomeçava a cantar logo em seguida. Depois de vários recomeços e várias palavras de baixo calão, pronunciadas por esse meu irmão, sempre na mesma estrofe, o papagaio assumia que elas pertenciam à cantiga que estava sendo entoada. Meu irmão fez isso durante duas semanas, enquanto o pessoal da casa estava viajando. Somente um dos filhos aparecia para dar comida ao louro de dona Paula. E sempre à noite, quando a pobre ave já estava exausta e sem força para cantar. Assim, ninguém percebeu a transformação pela qual o papagaio passava. Nem mesmo os nossos pais, pois dificilmente eles iam até o quintal. O mano pôde executar sua experiência sem ser incomodado. Nós, seus irmãos, também não o deduramos, estávamos na expectativa do seu resultado.

Esclareço que o papagaio de dona Paula só cantava quando dona Jandira começava a cantar suas cantigas de louvor. Ele dava continuidade e só parava quando lhe dava na telha ou outra pessoa falasse alguma palavra que ele ainda não conhecia.

Depois de quinze dias de ausência, a família de dona Paula voltou a casa. Traziam tanta tralha que ninguém se preocupou com o papagaio. A preocupação primeira foi guardar o que trouxeram: roupas, toalhas de banho e de mesa, colchas e lençóis de cama, panelas, as sobras de mantimentos que foram levados e não consumidos, sacos de sessenta quilos de milho e feijão, apanhados na fazenda, carne salgada de carneiro, queijo produzido na fazenda, saco de farinha de mandioca, rapaduras, mel de cana, frutas, ovos e tudo o mais que foi possível trazer no velho caminhãozinho da família. Era tarefa para o fim da tarde, pois eles chegaram às dezesseis horas, e que se estenderia até depois das vinte e duas horas. Durante todo esse período o papagaio ficou calado, prestando atenção ao movimento e esperando que alguém viesse colocar a sua comida. A única coisa que ele fazia era assoviar de vez em quando. Como a barulheira era grande, não se ouvia nada dentro de casa. Somente depois de tudo arrumado é que dona Jandira se deu de conta que o papagaio deveria estar com fome. Preparou sua comida e foi colocar na gaiola do louro. Ele já estava quase dormindo, mesmo assim exclamou “puta que pariu, até que enfim”. Dona Jandira, bastante sonolenta, não entendeu o que o velho papagaio dizia, pegou a gaiola, pendurou-a na parede da lavanderia, para protegê-lo da chuva que se prenunciava, deu as costas e foi dormir.

No dia seguinte, logo cedo, dona Jandira, cantando suas canções de louvor, tomou a gaiola do papagaio em suas mãos e a pendurou no galho do pé de seriguela. Ao retornar para iniciar as tarefas diárias na cozinha, ela percebeu que a ave, como de costume, passou a cantar a mesma canção que ela havia começado, só que com letra um pouco diferente. Outra canção foi iniciada e novamente o papagaio misturava as frases, intercalando palavras que a deixavam perplexa. Nunca ouvira do bico daquele papagaio tanta pornografia, tantos nomes feios, e ainda por cima no meio das canções religiosas que ela gostava de cantar. A empregada começou a perder suas forças, tentou gritar, mas não conseguiu. O muito que fez foi desmaiar sobre as caixas onde estavam guardadas panelas velhas de alumínio, que despencaram sobre sua cabeça. Caíram também garrafas e outros objetos empilhados sobre essas caixas. Foi um inferno danado. Enquanto isso, o papagaio, bastante agitado, procurava cantar o mais alto possível, deixando a todos que dele se aproximavam horrorizados. Vieram ver a confusão o velho Martiniano, o filho, a garota dos serviços leves e dona Paula, que, possessa e fazendo o sinal da cruz repetidas vezes, gritava: - Isso só pode ser coisa do diabo! Valha-me Deus, misericórdia! Seu terço não parava de rodar entre os dedos, de tão nervosa que estava. As ave-marias eram rezadas com tanto frenesi, com tanta exaltação e violência, que a velha senhora entrou em transe, sendo socorrida pelos parentes e levada para dentro de casa.

Depois de algum tempo, perceberam a velha dona Jandira por debaixo das caixas. Um dos filhos que havia permanecido na casa naquela noite, ajudando na arrumação da tranqueira, conseguiu reanimar dona Jandira, que assustada não parava de gritar. Foi preciso alguém jogar um pouco de água fria sobre a velha senhora, para ela acabar com aquele faniquito. Aos poucos ela foi ficando calma, mas sempre se justificando não ter sido ela que ensinara ao papagaio a pronunciar aquelas blasfêmias. Foi difícil acreditar, pois ela era a única pessoa a cuidar do velho papagaio, desde quando ele veio para aquela casa, ainda muito jovem. E isso já fazia mais de quarenta anos.

A solução encontrada foi mandar o desbocado papagaio ir morar na casa do administrador da fazenda, pois nem mesmo em sua casa do interior aquela ave maldita teria guarida, ordem expressa de dona Paula.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 10/11/2012
Reeditado em 11/12/2012
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