O doente são
-Você tem qualidade, meu sobrinho.
- Qualidades de caráter?
- Não... Conhecimento. Você é psicólogo, não é?
- Coitado de mim, tio... Não fosse saber acentuar palavras, partir sílabas, essas coisas, e eu teria de ficar pedindo dinheiro emprestado a vocês.
Meu tio Francisco sorriu e continuou:
- É aí mesmo que entra o meu sobrinho. Preciso de você com suas palavras.
O tio se assentou no sofá, um sofá revestido de tecido azul que ainda hoje tenho no meu quarto, e começou a contar o seu problema. Comparado comigo, era um homem alto, de quase 1,80m, tinha braços longos e gesticulava suavemente ao falar, acompanhando com sincronia sua fala também vagarosa, posto que enfática nos momentos precisos.
- Vamos, tio, em que posso servir?
- Você sabe que me consulto sempre com o doutor Edgard, não sabe?
Claro que eu sabia. Tia Zica já me falara dele e, com muito bom humor, até fizera uma crítica ao doutor, extensiva ao paciente:
- Sabe, meu sobrinho, não sei se vou poder continuar levando seu tio lá no doutor Edgard. Eles arranjam uma conversação sobre pescarias, só falam de peixes, de quem pescou o maior, o menor, essas histórias. Tenho até medo do homem errar a receita.
Com boa saúde, meu tio - dispensando a zelosa tia Zica - ia muitas vezes lá no consultório, mais para colocar a conversa em dia do que propriamente para receber prescrições médicas. E o médico o recebia, e conversavam, e discutiam futebol também, embora o forte fossem as pescarias, que uniam o homem simples ao doutor da medicina. Alguns anos depois, pude saber que várias dessas consultas eram mesmo de graça, pois o doutor liberava o paciente pescador das guias médicas fornecidas pelo plano de saúde.
- Que entre o senhor Francisco! – E lá ia meu tio, às vezes levando alguns bagres e lambaris para presentear aquele já quase amigo. Sim, quase amigo... Respeito, formalidade era o que não faltava naquela relação. Íntimo de serrotes e formões, que ele os manipulava com destreza, tio Francisco era sobretudo um homem respeitoso, que se colocava no seu lugar. Doutor era senhor, e ponto final. E era doutor, também, quando distante, nas referências que ele fazia àquele amigo.
- Sim, tio, em que posso ajudar com minhas palavras?
- Meu filho, você vai tirar de letra. O resto deixa comigo.
Seguiu-se a sua história, da qual o doutor Edgar era o personagem central. Tio Francisco contou-me que ligara para agendar consulta (sentia-se maravilhosamente bem e os últimos exames eram ótimos, segundo me informei com tia Zica), mas a secretária comunicou que o plano de saúde havia descredenciado o doutor Edgar.
- Veja só, meu sobrinho, descredenciaram o administrador da minha saúde.
- Lamento, tio, o que posso fazer? – disse, àquela altura imaginando onde minhas palavras teriam alguma serventia.
- Quero que faça um arrazoado, um abaixo-assinado. – Achei bonito aquele arrazoado, na boca de um homem de poucas letras. É que o tio gostava de música, arranhava um pouco o violão e escutava notícias. O resultado era aquele certo refinamento na linguagem.
- Sim, o que digo?
- Quero que fale o que aconteceu. O descredenciamento e a tristeza daqueles que ligaram e não puderam marcar. Acho que o doutor me receberia sem guias, mas não é o caso. É o caso que ele não pode atender a todos sem guias.
- Sim?
- Diga que os assinantes não querem mudar de médico; a essa altura é questão de amizade, de simpatia e que correm o risco de adoecer muito. Lembre que são pacientes idosos, apegados ao seu médico. Ah! Não se esqueça de elogiar a competência do homem.
De posse das ideias, caprichei no texto e, no dia seguinte, recebi o tio Francisco, que aprovou sem ressalvas os termos da importante subscrição. Foi assim que eu lhe disse, e ganhei um sorriso de agradecimento, e uma saída às pressas à caça de subscritores.
Tio Francisco andou pelas casas do bairro cujos moradores eram signatários do mesmo plano de saúde, e colheu assinaturas. Levou uma cópia do documento para a secretária e deu suas instruções, pedindo que recolhesse assinaturas de quem chegasse por lá ou de quem ligasse... Uma maratona, que durou dias.
Entre o abaixo-assinado e a volta do doutor Edgar, creio que tio Francisco esteve por lá e renovaram a conversa. Mas ele gostava mesmo era de ir amparado pelo plano, que ele pagava, e de conversar, e de falar de rios, córregos e pescarias, e de levar para casa uma receitinha, que fazia bem ao homem são e ao médico amigo.