Música Flamenca: Sangue e Amor

Depois de viajar agora no tão famoso trem AVE, que faz o trajeto de Madrid a Barcelona em aproximadamente 3 h e 30 min, cheguei a Barcelona por volta das 20 h 30 min. Soltei na estação Barceló Saints e resolvi ir a pé até o albergue aonde iria me hospedar. Era verão e na Espanha o sol se põe por volta das 22 horas . Mal esperava para conhecer a cidade, pedi aos agentes da estação que despachassem minhas bagagens para Equity Point Centric. Então, pus-me a caminhar, pois já sabia que, dali até o albergue, eram pouco mais de 25 min de caminhada.

Ah, Barcelona...  Despensa comentários. Sempre quis conhecê-la.  É uma cidade maravilhosa, mágica, radiante e a oportunidade de fazer o triathlon Barcelona Garmin  para mim foi uma experiência inesquecível. Acho que qualquer triatleta sonha em fazer este triathlon, pois Barcelona é uma cidade encantadora.

 Caramba, foi realmente a escolha ideal, a caminhada até ao albergue foi cercada pelo um misto de surpresa  e encanto. Apesar de estar bem no centro de Barcelona, ainda que pese o adiantado da hora, o ritmo da cidade era suave e relaxado. Uma leve brisa tênue soprava e trazia um frescor muito agradável àquele início de noite. No céu já se conseguia divisar cores difusas no horizonte, o sol já cansado preparava sua cama no oceano para se deitar. A noite, apesar de tímida ainda, começava a se salientar, podia se sentir, de forma incipiente, sua singela beleza estonteante e sedutora. Esse especial momento, incorporado pelos elementos hora, verão e Barcelona, carreava ritmos e, porque não, os sons dos antigos “gitanos” entoando o seu canto de lamento e dor aos deuses. Na atmosfera fazia se ouvir esse grito rouco oriundo do fundo de uma garganta incrustada de “dolor” que serpenteava o ar ganhando ritmo e som.  Durante todo o percurso do caminho, essas sensações me percorriam a alma. Mal chegara e já estava completamente apaixonado pela cidade. Eu devo ser um coração bem vagabundo e volúvel, apaixono-me à toa muito facilmente.

Quando enfim cheguei ao albergue, era evidente que pensava em me instalar, sentia-me um pouco cansado, porém agora estava esperando que minha bagagem chegasse logo. Entre as coisas que trazia, eu estava realmente preocupado com minha bike. Estava esperando-a mais do que qualquer outra coisa pela sua chegada, uma vez que pretendia sair nas primeiras horas da manhã para ir treinar e, lógico, também aproveitar a oportunidade de explorar Barcelona no pedal. Não demorou muito, logo, o camareiro veio ao meu quarto com as minhas coisas que acabara de chegar à recepção. Bom, agora era tomar um banho, fazer contato com resto da equipe, principalmente, o Herreiras, que era o treinador responsável pelo treinamento da equipe em Barcelona, e no mais jantar e aproveitar uma boa noite de sono.

Saí do albergue à procura de um restaurante. O que não foi nada difícil encontrar algum, pois hostel possui uma excelente localização, fica bem no meio do Passeig de Gràcia onde há muitas opções de gastronomia, no entanto, não estava a fim de procurar nada, queria apenas comer. Perguntei, então, ao recepcionista onde poderia encontrar um local para jantar àquela hora, ele logo me apontou, a uma quadra dali, o restaurante BBrB.

Agora, depois do jantar andei um pouco no entorno do albergue, mesmo até para não ir logo pra cama depois de comer uma boa refeição, precisava desgastar um pouco da energia ingerida. Assim passei em frente ao albergue, dei uma boa olhada para ele e resolvi explorar um pouco mais o Passeig de Gràcia, seguindo em frente para ver o que mais havia pelas proximidades do mesmo. Curioso é que quando me falaram em albergue, confesso que me veio a mente algo parecido como aqueles lugares que hospedam toda sorte de gente, quartos cheios de beliches  e banheiros coletivos. Mas que nada, o Equity Point Centric é o que eles chamam por aqui de hostel, são acomodações para hóspedes que ficam localizados, normalmente, em prédios antigos que passam por algumas formatações internas para se adequarem a uma estrutura de hospedagem. No mais, não é  um cinco estrelas, porém  a infra-estrutura é bem legal, os quartos bem apresentados com suítes, uma boa sala de estar e, sobretudo, um excelente salão de refeições.

Todavia o que realmente me impressionava era o ar de Barcelona, havia algo na atmosfera que começava a sentir de leve, não sei precisar o que, talvez fosse o ritmo da cidade ou sei lá o quê...   Porém a impressão de inquietude me percorria a alma. A sensação não era ruim, ao contrario, era algo bom, semelhante aquela sensação que a gente sente quando criança, na véspera do natal, para saber qual era o presente que estaria depositado ao pé da árvore natalina. Aquele breve caminhar, ali pelo entorno, me fez um bem danado, as luzes da cidade à noite, o ar ameno refrescado pela leve brisa que soprava, carinhosamente, o ritmo noturno e as pessoas que caminhavam como que embaladas por essa dança silenciosa, fez-me cair num estado de encantamento. A ponto de dizer conforme é muito usual por aqui: “Barcelona m´ encanta”. Uma coisa, porém, me incomodava: O catalão é uma língua nada fácil de entender, um misto de latim, francês e alemão, e por aqui é a língua oficial falada. De toda sorte, eles falam também o espanhol, porém nota-se certo contragosto dos barceloneses em fazerem uso do espanhol para se comunicarem.  Bom, já era mais do que passada a hora de dormir, afinal, o treino iria começar cedo  e eu precisaria estar bem disposto na manhã seguinte.

No dia seguinte, Herreiras,  por volta das seis hora já estava me buscando no hostel. Fomos até um ponto na praia de Barceloneta, próximo o hotel da vela, o grande W de Barcelona, onde um grupo de triatleta nos esperava. Feito as devidas apresentações, esperamos um pouco até o nascer do sol. Não demorou muito e lá estava ele levantando-se majestosamente com toda  sua imponência. Olha, para tudo! A visão é mais que espetacular... é algo de tirar o fôlego. Sinceramente, diante de uma visão dessa não dá pra acreditar que alguém nesse mundo possa se dizer ateu. As cores que se levantavam com nascente era pura magia, algo surreal, era a dança das cores que serpenteavam o espectro da luz entre o dourado, o vermelho e o violeta. Para logo depois surgir aquela bola incandescente de dentro do mediterrâneo. Era sem dúvida um conquistador, a noite por mais que tentasse resistir, não era páreo para sua onipresente beleza, rendida não via  escolha a não ser se deixar seduzir em seus braços e, num beijo apaixonado, entregava-se ao sonho de uma noite de verão.

Depois do show, começamos a pedalar nossas bikes. A princípio, um  leve giro, daí progredindo até ganhar aquecimento e após 15 min de pedal já estávamos aquecido plenamente a todo vapor. Seguimos, em pelotão de seis, pela orla da praia de Baceloneta seguindo em direção a Mongat, El Mansu e, indo depois,  até Premià Mar para dali retornar da rotatória. Esse era o trajeto que faríamos no ato da prova. Diga-se passagem que a prova aconteceria no próximo domingo e já era quinta-feira, ou seja, tinha pouco tempo para experimentar o percurso do triathlon. Menos mal, pois tem muita gente que chega de véspera. Contudo, apesar de me sentir bem fisicamente, não estava esperando correr no pelotão da frente na disputa pelo pódio. Confesso que minha etapa em Madrid, na ”ciudad universitaria”, tirou-me um pouco do foco no triathlon. De modo que não estava assim tão ansioso para prova de domingo. O que de certa forma me deixou muito mais relaxado e pude realmente curtir Barcelona. A bem da verdade, apesar de estar em ritmo de treino, no pedal de reconhecimento, todo atleta sabe que os treinamentos costumam ser bem mais exigentes que as próprias provas em si, ou seja, treinamento por mais paradisíaco que seja o lugar é sempre sinônimo de sofrimento.  Ainda assim estava curtindo cada quilometro da pedalada. Uma vez que a orla de Barcelona pela manhã era algo de fabuloso. Uma curiosidade, nunca, em lugar nenhum, houvera reparado antes numa linha de trem junto à orla de praia nenhuma, acho que Barcelona é uma exceção. As construções, as areias das praias, as pessoas, os coqueiros, as cores do céu, as ondas plácidas do mediterrâneo formavam um conjunto do mais puro encantamento. Definitivamente, Barcelona me encanta.

 Fiz o triathlon, no domingo, é a minha participação foi apenas discreta. Como eu esperava não cheguei nem perto do pódio, contudo estava super feliz.  A cada milímetro da prova me sentia abraçado pelo público que foi assisti-la. Depois de terminado o triatlhon, fomos convidados para assistir uma clinica sobre nutrição esportiva no salão Great  do grande W.  Bom, não vou nem falar do W Barcelona porque acabaria por escrever um livro, melhor deixar o hotel pra lá. O importante dessa história é que acabei fazendo amizade com José Aragonez, um estudante de medicina desportiva.

Após o término do simpósio, já lá no lado de fora do grande W,  perguntei a José como era noite em Barcelona e, especialmente, onde se podia ouvir boa música flamenca. Ele sorriu me perguntando se eu gostava de música flamenca e se conhecia de fato o flamenco. Disse-lhe que era ignorante no assunto e que minhas referências eram  Gyps kings,  Paco De Lucia e Pepe De Lucia. José olhou para mim e perguntou quanto tempo mais eu iria ficar em Barcelona. Respondi que não sabia, talvez,... mais uma semana.

- Fábio, se você quiser a gente pode ir na terça que vem no Jazz Sì Club, na carrer de Requesens, próximo à estação de Sant Antoni. Bom, é que o lugar é super bem frequentado e pra quem gosta de música... não tem lugar melhor aqui em Barcelona do que lá. Sem falar que, praticamente, é em frente ao Taller de Músics, Escuela de Música, Titulación Grado Superior. Então,  meu caro, nesse lugar, tudo o que você quiser saber sobre música, provavelmente, é lá que onde você saciará sua sede musical. Disse-me, José.

 - Caramba, fechou... mal posso esperar pela terça. José, estou hospedado no Passeig de Gràcia, no  Equity Point. Disse-lhe eu.

- Fábio, eu nas próximas duas semanas estou de férias da faculdade, então, se  você quiser posso lhe mostrar a cidade e lhe apresentar algumas pessoas amigas, também a gente pode até fazer um treininho só pra não enferrujar. Respondi-lhe que não teria problema, e o que ele marcasse eu toparia. Disse-lhe, ainda, que precisava resolver alguns assuntos de ordem prática com Herreiras e depois estaria sem compromisso nenhum. Sabia ainda que pelo meu cronograma de competição só viria a competir no final de setembro em Pucón, no Chile. No mais estava, realmente, à toa e tinha pelo menos uns vinte dias pela frente completamente livres de quaisquer compromissos. Então, despedi-me dele, dizendo-lhe que não deixasse de me procurar no hostel. Fui à procura do Herreiras para saber quais as diretrizes que seriam  orientadas à equipe.

Segundo, o treinador, a orientação era para que a equipe retornasse às bases, ou seja, cada um teria que retorna ao seu país. Disse-lhe que continuaria em Barcelona por mais 15 dias, e que arcaria com as despesas dali para frente. Pedi-lhe apenas que remarcasse minha volta ao Brasil para daqui a 15 dias. Ele me respondeu que tentaria providenciar isso o quanto antes.

 Já, na terça-feira, cheguei, acompanhado de José, por volta das 4 da tarde, a um lugar chamado Plaça Reial, na La Rambla, onde, tradicionalmente, rolam os “happy hour” mais quente de Barcelona. O lugar é sensacional, tratava-se de uma praça quadrangular com um chafariz ao centro, cercada por construções antigas em formato de arcos na base estrutural dos sobrados, que não chegavam a ter mais de três andares, lembrava um pouco a Praça XV, por trás da bolsa de valores, no centro do Rio de Janeiro, todavia, somente, no aspecto quanto ao “happy hour” de suas sextas-feiras. O lugar é perfeito para encontros de artistas, pessoas, turistas e para quem quer interagir com a diversão e o lado intelectual de Barcelona, La Rambla  é o “lugar”.

Bom, assim que chegamos, encontramos um grupo de amigos de José, que estavam num dos becos adjacentes que dão para Plaça Reial, e logo começaram as apresentações. Conheci, então, uma das pessoas mais espetacular de minha vida, Leda. Eles estavam em forma de roda, bem no meio do beco, com as palmas das mãos e com os pés marcavam o ritmo, uma cantora, Alba Guerrero, entoava canções flamencas e, uma a uma das pessoas, que compunham o grupo, ganhava o centro da roda e fazia ali uma breve apresentação de dança flamenca. Quando Leda começou a dançar fiquei tomado por um sentimento forte que me incendiou o coração. Leda era mais que o fogo, era pura chama que serpenteava o ar em rodamoinhos. Foi, então, que consegui traduzir aquela sensação que tive no dia em que cheguei a Barcelona, ou seja, o ritmo e som estavam no ar, eu só não conseguia  vê-los. E, agora, vendo Leda dançar as coisas ficarão claras para mim. Entendi porque a cidade era fortemente impregnada com o ar “gaudiniano”. Não era o ar de Guadí, mas o ar que inspirou a obra de Gaudí e que podia se notar tão claramente nos movimentos dos braços, mãos, quadril e pés de Leda, pois ela incorporava toda essa inspiração fazendo-a ganhar forma, ritmo e som dentro do espectro visível. Estava ali, bem à minha frente, o presente da árvore natalina.  Leda ao centro da roda era um tornado de pura força de sentimentos, tamanha era energia com que bailava. Sua expressão facial, a postura corporal, o balancear dos braços e quadril, seu sapateado dava àquela dança algo surreal. Meus olhos não podiam acreditar naquilo que via, ao passo que também se hipnotizavam com aquele bailar formidável. Leda bailava com energia de um tornado e ao mesmo tempo com a delicadeza de uma pétala. Se existe um sol, provavelmente, este não seria mais incandescente que os meus olhos, acho que nada podia brilhar mais que eles naquele momento, nem mesmo o diamante seria páreo para os meus pobres olhos, hipnotizados por aquela feitiçaria “gitana”.  Leda me deixou sem palavra e sem ar, sua dança era um rodamoinho de paixão com força de vulcão.

Encaminhamo-nos todos a umas mesas dispostas em frente ao “Los Tarantos”, ali mesmo na “Plaça Reial”, que é uma das casas de espetáculos musicais mais tradicionais de Barcelona, em matéria de Música underground. Arrumei um jeito de me sentar junto à Leda. Aí, então, pus-me a conversar com ela:

- Leda, estou impressionado com seu talento. Você me deixou de queixou caído. Sua performance  foi espetacular,estou sem fôlego até agora. Onde foi que você aprendeu a dançar assim. Ela com breve sorriso de que estava lisonjeado pelos meus elogios, me respondeu:

- Fábio, não existe uma escola para isso. A gente nasce dançando flamenco. Esse ritmo está no nosso sangue, é a nossa herança genética, essa forma de dançar vem sendo transmitida a século, por tradição familiar, pelos nossos ancestrais. Ela falando assim, com um jeito compassado, suave e um sorriso de puro prazer no rosto, me conquistou por completo, não tinha mais como esconder, estava completamente fascinado por ela. Leda era uma mulher muito linda... olhos e cabelos negros como noite sem lua,estatura média, um corpo esguio e bem torneado com curvas acentuadas, quadril largo,  busto protuberante e harmonioso. Perguntei-lhe a respeito da origem da música flamenca, deixando estranhar o meu espanto de ver o flamenco tão bem representado em Barcelona, tendo em vista que a tradição de Servilha em relação à arte flamenca é muito mais acentuada em toda a Espanha, sem falar que Barcelona se localiza a pelo menos a mil quilômetros de distância de lá.

 - Olha, disse Leda, precisamente, ninguém sabe ao certo a origem flamenca, a nossa cultura sempre foi ágrafa. Mas, provavelmente, na Espanha, arte flamenca surgiu mesmo na região da Andaluzia. Minha família, Arteaga, tem suas raízes em Cádiz, todas as minhas influências flamencas vêm de lá. Prosseguindo, ela me contou mais:

- Arte flamenca nasceu na Andaluzia dentro de uma comunidade marginal, intercultural e perseguida, que era composta por judeus, árabes e gitanos e que depois, durante o séc. XVI, juntou-se aos negros, vindo da África, que faziam escala em Cádiz com destino ao trabalho escravo na America, muitos dos quais conseguiam escapar e se refugiavam nessa comunidade, sendo que muitos deles eram depois capturados e reconduzidos aos seus trágicos destinos...

- Provavelmente, Fábio, essa pode ser até uma linha de estudo pra tentar se buscar uma origem comum entre o flamenco e o Blues americano. Até porque, há traços comuns entre eles, não propriamente o ritmo, mas forma de cantar as dores da alma... o caráter marginal e o assédio a nossa origem étnica acabaram trazendo esse elemento de extrema dor que, geralmente, proclama essa riqueza variada de ritmos e culturas musicais que dão características próprias as nossas músicas e danças. E, assim falando, Leda, conseguia me  tirar do tempo e do espaço presente. Não enxergava mais ninguém e mais nada, era eu, Leda e o espaço infinito entre nós.

- Leda, estou completamente passado... Jamais poderia nem de leve imaginar que flamenco e blues pudessem ter uma origem comum...

- Não estou dizendo isso, apenas falei que esse material é uma boa fonte de estudo. Disse ela.

De repente, Alba começou a cantar, um grito rouco saltou-lhe da garganta, Arturo e os demais começaram percutir a mesa onde estávamos, as palmas marcando o ritmo em compasso quebrado acentuavam o contraponto do tempo forte. Leda, aos gritos de olé, sapateava com a elegância de Eleanor Powell, num instante a nossa mesa foi tomado por transeuntes. Alba arrancava os tons e sons de dentro da alma que perpassavam pela garganta. A música fluía como que adornada pelo sofrimento, assim como um lapidador o faz, de maneira precisa, a um diamante bruto. As feições de Alba, nas notas mais altas, tatuavam uma historia de sangue, dor, suor e amor. Não existe outra forma de viver a vida a não ser pela entrega total ao amor de sua existência, conquanto tenhamos que sacrificar o próprio coração pela bandeira que trêmula em sua pátria. Acho que era mais ou menos isso o que a canção dizia.

Aplausos e mais aplausos regados aos gritos de Olé, Olé, Olé... Que coisa fabulosa, olhava pra  Alba e depois pra Leda, que traduzia aquela canção em forma de dança, já sem noção de nada, estava literalmente flechado por aquela magia “gitana”. Os cabelos de Leda longos e negros, solto ao ar, ondulavam e rodopiavam dançando como vaga-lumes em noite sem luar.

Acabada a canção, voltamos a conversar:

- Fábio, é isso... Música flamenca é assim. Essa espontaneidade que flui de dentro de nossas almas sem que para isso venhamos a precisar de nenhum outro instrumento além de nossas gargantas, mãos e pés.

- Leda, você trabalha com isso? Perguntei-lhe.

- Não... eu vivo disso. O flamenco é o ar que eu respiro, é a minha vida e o coração que bate em meu peito... Sorrindo e com um estranho brilho no olhar, ela prosseguiu falando:

- Todos os rios têm seus afluentes, tudo que tem valor nesta vida é ganho com amor e sangue. De outro lado, acredito que nossas vidas se mesclam a uma única fonte cujo amor, de forma inesgotável, não para de fluir... Existem desertos em nossos corações onde homens e mulheres se completam feito água e sede... Ela, assim falando, me conquistou por completo.

- Verdade e coragem sempre foram os nortes da arte “gitana”, portanto somos apegados as nossas tradições sem, no entanto, estarmos ancorados ao passado a ponto de não conseguirmos navegar dentro de nossos espíritos. Essa navegação por dentro de nossos oceanos, obrigatoriamente, nos coloca diante de espaços inteiramente novos dentro de nossos corações, fazendo com que venhamos a evoluir perante a modernidade que se avizinha no horizonte de nossa evolução enquanto ser humano. Fábio, tudo que sei fazer é cantar e dançar se isso vai garantir minha existência futura eu não sei, todavia gerações e mais gerações do meu DNA vem atravessando as muralhas dos séculos, fazendo exatamente isso o que eu faço atualmente. Olha, gente,acho que minha baba, nessa ocasião, era do tamanho da catarata do Iguaçu. E, assim, com essa força de alma, me explicou um pouco mais sobre o flamenco:

- Todas as nossas dores e tristeza não podem ser expressas por palavras, por isso o nosso canto é divorciado do corpo, a alma, então, distanciada dele e com o coração na mão, espremido sangrando por entre os dedos, apresenta seu canto de lamento e dor aos deuses. Com essa sofreguidão e à medida que o canto vai fluindo nossa dor se esvazia, é quando a alegria se instala e é quando a festa acontece em nossas almas.

Ou seja, dá para não se apaixonar por uma criatura dessa?  Gente eu não tenho culpa! Sou uma vítima inocente nesta historia. A culpa é de Barcelona. Bom, após uma breve apresentação do grupo de Leda, dentro do Los Tarantos, apresentações essas que tinham duração de no máximo 30 minutos, pois a casa apresentava estilos variados de músicas jazz, rock, rumba e até mesmo show de MPB. Fomos junto para uma outra casa também de apresentação,  o Jazz Sí Club, que ficava a 23 minutos dali de onde estávamos. Fui durante o trajeto sempre caminhando ao lado de Leda. Ela começou a me fazer pergunta sobre mim.

- Fábio, o que você faz? Respondi-lhe que entre um monte coisas que já fiz para ganhar a vida, estava agora me dedicando ao triathlon que era uma modalidade esportiva, que consistia em nadar, pedalar e correr. E que minha estadia em Barcelona era tão-somente por conta do triathlon que corri na praia de Barceloneta. E que já tinha corrido um em Madrid e outro em Freiburg na Suíça. Disse-lhe ainda que era patrocinado pelo Tribunal de Justiça do Estado, no Brasil, e por uma empresa chamada Pé de atleta. Explique-lhe melhor as diversas modalidades de triathlon segunda as distancias de cada prova. Sendo que a prova mais difícil do triatlhon era o ironman. Ela se mostrou bastante curiosa sobre o esporte. Disse-me que quando não está ensaiando com grupo, costuma fazer natação no Atlètic Barceloneta para ajudar manter a forma:

 - A propósito, vou fazer natação amanhã... você bem que poderia ser meu convidado, quem sabe lá você não me dar umas aulas. Gente, confesso que meu coração, nesse momento,  disparou que nem galope de cavalo.

- Claro que sim... só não sei como chegar lá, lembre-se que não conheço nada por aqui. Ela sorriu, dizendo:

- Não se preocupe, eu pego você no lugar onde está hospedado. Aliás, onde você está hospedado aqui em Barcelona? Pergunto-me Leda.

- Tô hospedado no Equity Point, no Passeig de Gràcia... Respondi-lhe.

Então, tá combinado... passo por lá pela 14 horas de amanhã. Ok?!

Caramba, acho que era naquele momento o homem mais feliz de todo o mundo, porém contive-me. Engraçado como é que o tempo passa rápido quando estamos felizes, num instante chagamos ao Jazz Sí Club, que fica localizado bem próximo à estação de Sant Antoinì.

Assim que chegamos, encontramos Mônica Chucuela, uma amiga de Leda que também cantaria em dueto com Alba Guerrero naquela noite. Tinha Arturo Gutt que era um violonista dos mais conceituado de Barcelona. Completava ainda o grupo três bailarinos e três bailarinas. Quando começou apresentação, confesso que um terremoto me abalou a alma. Nunca vi uma apresentação assim, que coisa fabulosa. Monica e Alba cantavam, literalmente, com o coração na mão espremido entre os dedos. O violão de Arturo serpenteava com um solo de dedilhado cuja velocidade dos dedos era semelhante aos lampejos de raios. As palmas começaram a preencher os espaços ainda existentes dentro harmonia da música. Então, no meio da execução, quando o momento era já grandioso dentro da estrutura composicional, entra Leda e os demais bailarinos. No palco, sobre o tablado, o efeito do sapateado era algo magnífico. De tudo o que tinha visto antes, isso não era nada, comparado àquilo que estava vendo agora. Eu estava petrificado. Num determinado momento, Leda avança para extremidade do palco. O violão de Arturo se apaziguou com uma sonoridade mais suave, as palmas agora também um pouco mais contidas e mais baixas. Aí Leda começa a evoluir, a princípio, os golpes do sapateado sobre o tablado do palco eram suaves e tímidos, depois a dose vai aumentando, aumentando sempre com um malabarismo fantástico dos braços e mãos. De repente, a freqüência do sapateado vai crescendo a ponto de chegar a um clímax que mais parecia uma rajada de metralhadora com mil tiros por minutos. Novamente os gritos de Olé, Olé dominavam a sala, a freqüência de seu sapateado era tão intensa e rápida que parecia que Leda estava sendo eletrocutada ali no palco e que iria morrer, ao passo que também transferia essa carga de energia ao público, fazendo-nos sentir a mesma carga de tensão que fazia o corpo dela tremer. A impressão que tínhamos que ela iria se transmutar em música. Pois o corpo de Leda tremia como se estivesse recebendo uma descarga de mil volts. Seu rosto, banhado de suor, era emoção pura, verdadeiramente, estávamos diante da mais pura força da natureza, semelhante uma tormenta em alto mar. Foi quando entrou em cena o resto do corpo de bailarinos, as cantoras e o violão tornaram a crescer e palmas se intensificaram, agora, já se aproximando do “gran finale” a música estava grandioso como Himalaia, lembrava a parte final do bolero de Ravel. E, de repente, a parada abrupta e o grande grito Olé...

Ficamos aplaudindo-os pelos uns cinco minutos, eu acho. Que coisa maravilhosa. Eu me perguntava a mim próprio como aquela mulher estava ali ainda... Como não estava totalmente esgotada e como não entrou e convulsão?! Impressionante! Eu, sinceramente, acreditei que Leda iria ter um troço.  Eu estava tão transtornado que quando ela veio ao meu encontro, dei-lhe um abraço tão apertado que, não é brincadeira não, pensei que lhe tinha quebrados todos os seus ossos.

- Mulher, me desculpe, mas o que foi isso. Você vai acabar morrendo assim... Veja ainda tô tremendo todo por sua causa. Novamente, tomei-a aos meus braços e a abracei de novo. Ela sorriu de jeito matreiro e falou-me ao pé do ouvido:

- Fábio, esse é o plano, morrer dançando pra mim significa a glória. Nós “gitanos” não temos escolha, é essa a nossa vida, nascemos para arte de dançar e cantar e por ela morreremos.

Despedi-me de Leda em estado de êxtase, nessa altura do campeonato, nem lembrava mais do pobre José e nem sei por onde havia se metido. Só sei que cheguei ao hostel tarde da noite e mal podia esperar pelo dia seguinte, acho que estava completamente apaixonado por Leda. De modo que quando fui me deitar não conseguia parar de pensar em tudo o que aconteceu. Estava muito ansioso esperando o dia de amanhã, conquanto não conseguia dormir, resolvi, então, descer até o bar do hostel e lá pedi ao barman que me fizesse um gim-tônico. Só sei que quando voltei para cama dormi que nem pedra.

No dia seguinte, à tarde, estava na recepção do hostel esperando por Leda. Lembro-me que estava tentando ler alguma coisa em catalão nos vários folhetos informativo que eram disponibilizados ali na sala de espera. Estava numa angústia danada, afinal, já eram mais de 2 horas e Leda não chegava. Acho que nessa hora estava lendo os malditos folhetos até de cabeça para baixo. Deram duas e trinta e nada. “Pronto, Leda não vem mais.” Aquela espera estava me matando, era tão dolorida como ácido a gotejar o coração. Por outro lado, me dei conta que não sabia como reencontrá-la, não peguei telefone, endereço ou e-mail. Na hora fiquei tão deslumbrado que não me atentei pra essas coisas. Mesmo o José não tinha como encontrá-lo também. “Que “M”´... “Três e quinze”... “Bom, Leda não vem e vou cuidar de fazer outra coisa, vou pegar a bike e sair por aí pedalando se não vou acabar enlouquecendo”. Quando estava me retirando da recepção sentir uma mão segurar o meu ombro por trás e um forte aroma de gardênia no ar. Para quem estava já  naufragado em um oceano de melancolia, a visão de Leda era a redenção para náufrago, a ilha paradisíaca, enfim, com todas as frutas tropicais e água à vontade. Sentir que meus olhos se irradiaram e uma alegria tremenda me incendiou o coração:

- “Perdoname, querido, yo quedé ocupada con algunas cosas en mi escuela”. Disse Leda, com uma voz super suave e doce, abraçando-me em seguida.

- Não tem problema... Não tinha nada para fazer mesmo. Fiquei apenas preocupado, pois não sei nada de você. Não tenho seu telefone, não sei onde mora e tampouco como lhe encontrar, enfim, se você não viesse, eu não teria como lhe achar. Ela sorriu, percebendo a minha angústia em perdê-la.

Chegamos então ao clube de natação. Bem se via que o corpo de Leda era milimetricamente talhado pelo balé. De biquíni, corpo de Leda se mostrava bem atlético e escultural, pernas e braços com uma excelente compleição muscular, seu abdômen era sarado e bem riscado, suas pernas eram muito harmoniosas, encorpadas pela musculatura bem trabalhada e uma panturrilha de fazer inveja a muita “top model”. Nadamos ali durante uns 50 minutos, o dia estava bastante agradável, a temperatura deveria estar na casa dos 34º graus de calor, todavia soprava do mediterrâneo um vento que amenizava o calor. Deitamo-nos numas espreguiçadeiras na área externa da piscina para aproveitar o sol da tarde. O verão em Barcelona é uma dádiva de deus. Que sol maravilhoso, que céu azul de ofuscar retina, o perfume do mediterrâneo e que mulher espetacular essa do meu lado. Não, para tudo...! Estava me sentindo um verdadeiro Onassis:

- Leda, você dá aulas também?

- Sim... Dou aula de flamenco na Escuela de Música, Titulación Grado Superior.

- Por que o flamenco é tão forte aqui? Afinal, Barcelona é capital da Catalunya, sendo que o flamenco é uma manifestação típica do sul da Península Ibérica, ou seja, algo que estar muito impregnado no DNA espanhol e, tendo em vista toda essa rivalidade entre o catalão e o espanhol como se justifica, então, o flamenco ser tão marcante aqui na região da Catalunya.  Perguntei-lhe

- Fábio, na verdade, o flamenco não é assim tão marcante aqui. O que você viu foi uma pequena amostra cultural artística de Barcelona. Essa cidade é, por demais, cosmopolita, sofremos as mais variadas influências de manifestações artísticas e sempre foi assim, desde os tempos imemoriais devido a nossa localização geográfica... Isso é muito bom porque não nos prendemos a um estilo somente, temos assim a arte catalã enriquecida por aquilo que é de melhor trazidas de outras artes. Assim, temos o Jazz, as baladas eletrônicas, os boleros, MPB, “music  pop” americana e, sobretudo, temos a identidade catalã na rumba Sardenha ou rumba catalana que é uma versão mais sofisticada da rumba cubana, impregnada de mais instrumentalidade, e que também incorpora, vez ou outra motivos flamencos, daí a rumba catalana se assemelhar um pouco à entonação do canto flamenco, pois a rumba da Sardenha é bem esta mescla de estilos. Essa música é realmente muito popular por aqui... Continuando, Leda explico-me mais:

- Olha, a música flamenca e a dança foram introduzidas nas classes sociais mais altas no início do século XIX, como nos cafés e bares de entretenimento de Sevilha e Cádiz. Assim, o flamenco foi se popularizando tanto nas camadas menos favorecidas quanto nas mais abastadas da sociedade hispânica... Para depois, então, o flamenco ser declarado Patrimônio Imaterial da Humanidade...  Canto, dança e violão flamenco são um conjunto de dança e de música em que os movimentos dos pés, mãos e braços são muito precisos, mas os bailarinos têm que saber como improvisar dentro de uma estrutura fixa, pois a composição flamenca não é muito rica de elementos estruturais. Diferentemente de nosso ritmo musical multiplicativo da rumba catalana, ou seja, dos padrões rítmicos com origem na multiplicação ou divisão (normalmente por dois ou três), já alguns ritmos flamencos (Palo) se apresentam de uma forma aditiva. Segundo, Ann Livermore, estudiosa de música flamenca, lá da minha ”Escuela”,  encontramos 14 ritmos irregulares – principalmente os que alternam o compasso 3/4 com o 6/8 – por toda a península Ibérica. Este tipo de alternância é comum ao flamenco, como no ritmo flamenco chamado  “Petenera”, que se constrói desta maneira. Este compasso de doze tempos se apresenta por meio de várias alternâncias rítmicas, tais como:  2+2+3+3+2 ou  3+3+2+2+2. Tais alternâncias nos dizem a que grupo este "Palo", que é o nome dado tradicionalmente a cada forma de composição flamenco, pertence... Assim, o flamenco pode ser dançado em grupo ou sozinho... a  guitarra flamenca espanhola, abrange uma grande variedade de canções, danças e “guitarrísticos” estilos. A música é baseada em um sistema harmônico intimamente relacionada com a música árabe, judaica e ritmos do norte da África. A guitarra é usada em flamenco sozinha ou para acompanhar a voz ou para lançar a base da  dança com melodias de fogo, dedilhando-a  e ao mesmo tempo percutindo-a...

- Ah, já ia me esquecendo, amanhã vou te levar numa roda de "buleria".Nesse momento interrompi perguntando-lhe o que era "buleria".

-"Buleria", disse ela, é um "palo" flamenco, ritmo também flamenco composto de 12 tempos, ou seja, cada compasso é composto de 12 tempos. "Buleria" vem da província de Cádiz, da cidade de Jerez de La Fronteira, que é o berço da "buleria", e que fica na Andaluzia, no sul da Espanha. E o próprio nome vem de burla que significa uma brincadeira informal, uma festa entre famílias e o nome evolui para "buleria", que nada mais e nada menos significa uma festa, um encontro que se dança hoje em dia em teatro e em apresentações maiores e, antigamente, e até hoje também é dançado no meio das famílias, os ciganos, os "gitano" espanhóis se encontram e fazem essa brincadeira que é a buleria. Então, dai é que vem cada bailarino e sai uma hora para o centro da roda, faz uma gracinha e volta dando a vez a outro , ou seja, é uma grande festa "gitana"... Assim, Leda falava com uma simplicidade e com um prazer tamanho que tudo parecia fácil de entender.

Durante os dias que se sucederam até a minha partida de Barcelona, tive a oportunidade de conhecer cada cantinho de Barcelona, sempre acompanhado da minha muito querida Leda, uma pessoa, realmente, inesquecível para mim que fez com que eu desenhasse uma das mais lindas tatuagens na parede interna de meu coração em sua homenagem. Lembro-me de ter me despedido dela no aeroporto de Barcelona, El Prat, com muitas lágrimas nos olhos e  com o coração espatifado.

Eu posso dizer, com todas as letras, eu conheci Leda Arteaga.

 Agora, o próximo capítulo dessa viagem ao mundo da música se dar em São Petesgurgo, música cossaca, tendo como anfitriã a minha muito querida cantora Irina Deminakatya.

( Fábio Omena)

Ohhdin
Enviado por Ohhdin em 03/11/2012
Reeditado em 03/10/2013
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