Sobre o Hudson

Esperou serenamente a mudança do semáforo.Baixo, franzino,sem transparecer fragilidade.Cabelo negro , face enrugada , testa ampla encimando um olhar sereno que vaza pelos olhos afastados e apertados.No boné preto o escudo dos Yankees ,uma jaqueta jeans, camisa quadriculada de algodão ,calças cáqui cingidas por um cinto de couro cru , velhos e cambados sapatos tênis. Na mão direita,uma sacola da Sears & Roebuck . Cruza a rua, em passo miúdo e resoluto , em frente ao prédio já antigo, de traços angulosos,vidro e aço a refletir o céu azul e as águas do Hudson, em placidez outonal. Agora lento e distraído, olha as vitrines , após vencer um novo quarteirão . A multidão envolvia-o tal um casaco,mas ele não se sentia desconfortável. Tudo fazia parte de uma cena muito conhecida das revistas estrangeiras e da TV.Gente,muita gente.

Sabia com todo o pequeno corpo que nunca seria um deles.Jamais seria.Não os invejava.Não os odiava.O ódio ás vezes passava rente,mas nunca o abraçara. Muitas vezes ,andaram lado a lado,sem troca de olhares,sem alterar as passadas. Paralelos , sempre paralelos , sem infinito para uni-los , ele e o ódio .

Resolveu descansar .Sentou no pequeno banco de pedra,na entrada de um parque.O grande prédio mostrava-se em mais detalhes,a transparência do vidro absorvia as pessoas.Pensou em entrar,tomar um elevador e contemplar a vista da cidade, lá de cima.Sorriu para dentro ; a vontade é ardilosa .Pensou que a natureza dos edifícios era desafiar o homem a subir,ficar junto ao céu,arranhando-o,enroscando-se nele.As montanhas , não . Simplesmente estavam lá .Rastros de Deus em sua longa jornada.As pegadas ficaram ,testemunhando Deus ou apenas a sua passagem ,um ou vários dias e noites muito antigas. Agora, testemunhas ao vento de si mesmas.E Deus espreitava ao longe,muito longe.Chomolungma,seu filho mais forte,mais alto,mais duro,mais implacável.Muitos naquela cidade pagariam para ver o mundo do alto de Chomolungma, alguns talvez lá procurassem Deus , que estaria tão a sua frente e tão próximo que jamais seria visto.Muitos morreram, só porque a montanha estava lá.

Isso os incomodava .E muito. Levantou do banco.Caminhou até a calçada do edifício de metal e vidro.Sentou-se,tirou o boné e os sapatos ,colocando as meias dentro deles, despiu a jaqueta,abriu a camisa . Lentificou os gestos ; pegou da sacola a bandeira do seu país, estendeu-a no chão , em curta e profunda reverencia . Agora, amplo e preciso, tirou da sacola o depósito de cinco litros, vertendo sobre o corpo a gasolina azul e fria ; de um bolso traseiro da calça, puxou o isqueiro que acenderia , acalentando a chama junto ao peito e ao rosto.

A chama sustenta por mãos sonâmbulas, envolveu-lhe todo o corpo .Não sentia dor nem emoção, apenas meditava enquanto a transição de homem para fogo se anunciava . Pessoas começaram a correr pela calçada , assustadas pelo nascimento brusco das chamas .Em algumas janelas do prédio envidraçado, alguns gritavam ; um terror em muitas línguas,dialetos e algaravias , profuso , potente . Na calçada oposta, homens e mulheres formavam um grupo a assisti-lo, uns pulando,saltitando em aflição,com as mãos na cabeça e apontando para o alto, na direção do prédio da ONU, de metal e vidro refletindo a pequena fogueira a arder, no cair da tarde , em matizes alternantes de vermelho e azul.

N.A : Shomolungma : denominação tibetana do Monte Everest