O Indióta!

Sexta-feira de calor abrasante em fins do mês de outubro, mais ou menos umas cinco horas da tarde e nada do calor amainar em Porto Velho. Romualdo olhou para o termômetro acoplado ao relógio digital em cima da geladeira da copa da cozinha do escritório e suspirou um desalento.

-Minha Mãe do Céu! Trinta e nove graus à sombra!? Onde é que vamos parar? Isso aqui virou a antessala do inferno.

Ato contínuo abriu a porta da geladeira, abriu os botões da camisa e recebeu o ar refrigerado que vinha do congelador, depois, pegou uma garrafa com água e após encher o copo, bebeu avidamente. Em seguida, tirou o celular do estojo à cintura e ligou para o amigo Zé Lúcio.

-E aí, meu camarada? Você não esqueceu o chopinho que a gente vai matar lá no Mirante Três e Meio, né? Cara! Você vai ter que passar por aqui... ‘Tou a pé. O meu carro deu pau e foi para a oficina... Só vou poder pega-lo no sábado, lá pelo meio-dia.

-Agora ferrô! Eu estava contando contigo, meu chapa! Eu também ‘tô sem carro... Emprestei o meu para o meu irmão... Faz o seguinte, vai de ônibus mesmo... Aí pelo teu escritório passa o buzão “647” e o trajeto dele inclui a Avenida Farquar; depois, é só descer em frente ao Estádio Aluízio Ferreira... Do estádio até o Mirante é um pulinho. Beleza?

-Ficou maluco, Zé? Nesse calor do cacete, ônibus lotado, trânsito infernal... Vou nada, meu camarada! Vou dar uma de Angélica, “vou de táxi”... Vou de ar condicionado... Te encontro lá... Valeu? E como vou chegar primeiro, vou fazendo o pedido... Vou pedir um “Pato no Tucupi” e um “Pirarucu à Casaca”... Pode ser?

-Por mim não tem problema... Mas eu vou de ônibus mesmo... Faz tempo que eu não ando de “buzão”.

Algum tempo depois o Zé Lúcio visivelmente aborrecido encontrou o amigo degustando um chope de colarinho na lanchonete “Mirante Três e Meio”; reparou que o Sol se deitava preguiçosamente no outro lado do rio por detrás das árvores frondosas que se estendiam até a barragem da Usina Hidrelétrica do Santo Antônio.

O Por-do-Sol no Rio Madeira apresentava matizes que variavam do rubro ao rosa claro, entremeado de tons cinza e dourado, reflexos das águas amarelas do caudaloso rio. As águas do Rio Caiary, antiga denominação do Rio Madeira, rolavam indolentes rumo ao Rio Amazonas, e do Rio Mar, juntavam-se ao Tapajós, e, amalgamados, seguiam para a Baía de Guajará, porta de entrada para o mar.

Romualdo já estava no terceiro chope. Refestelado em uma cadeira de frente para o Madeira, aproveitava a brisa refrescante que soprava do rio de águas cor de ouro. De vez enquanto deitava olhares cobiçosos e compridos nas moreninhas que circulavam pela lanchonete lotada naquele princípio de noite, no jogo típico de “azaração” que permeia os “happy hour” de todas as cidades de todos os lugares do mundo.

O volumoso Romualdo, com dificuldade levantou-se da cadeira para cumprimentar o amigo.

-Qual foi, meu camarada? Que cara feia é essa, rapaz? Senta aí e pede um chopinho estupidamente gelado, dá uma olhadinha nas meninas e relaxa meu rapaz! O que aconteceu? O ônibus estava muito lotado? Estava muito calor? O que foi que te deixou com essa cara de enterro?

Zé Lúcio puxou uma cadeira, sentou, fez sinal para o garçom pedindo uma caneca de chope e, somente depois de tomar o primeiro gole é que se dignou a responder as perguntas do amigo.

-Eu até que dei sorte, meu jovem! Subi num “buzão” com ar condicionado, e não, ele não estava lotado... ‘Tava legal! O problema são os imbecis que andam com celulares ligados com o som em alto volume...

-Hiii rapaz! Essa mania virou praga em tudo quanto é lugar... Tem inclusive, uns idiotas que acham o som do celular muito baixo e conectam uma caixinha de som somente para torrar mais ainda a paciência da gente.

-Não, meu caro Romualdo... Idiota é diferente de imbecil...

-Como assim...? Diferente? É tudo a mesma coisa, rapaz!

-Não, meu jovem! Embora a IMBECILIDADE e a IDIOTIA sejam semelhantes, de certo existem diferenças sutis entre ambas...

-Como assim...? ‘Tá gozando com a minha cara, ô Zé? ‘Tá me achando com cara de IMBECIL ou de IDIOTA? - Ironizou o Romualdo

Zé Lúcio soltou uma risada de genuíno bom humor, fez sinal para o garçom trazer mais uma caneca de chope; perguntou pelos acepipes “Pato no Tucupi” e “Pirarucu à Casaca”; com o canto do olho reparou nas grossas pernas de uma morena sentada à mesa ao lado, pigarreou, encarou o amigo e respondeu ainda rindo das perguntas ridículas do Romualdo:

-Claro que não, ô cabeça oca! Não estamos falando aqui do sentido estrito da neurologia, psiquiatria ou até, psicologia. Estamos falando da situação contextualizada pelo IMBECIL ou pelo IDIOTA no cotidiano urbano. Neste diapasão, essas qualificações estão mais perto do campo da sociologia do que da neurologia e/ou psiquiatria... Compreende? Como diria o Pelé!

Com o queixo caído de espanto pelo prisma peculiar do amigo Zé Lúcio complicar as coisas mais simples da vida, Romualdo degustou um grande gole de chope, chamou o garçom e também o inquiriu sobre os acepipes, depois cruzou os braços, recostou-se na cadeira, olhou para o amigo e falou:

-Sou todo ouvidos!

Zé Lúcio mudou a posição da bunda na cadeira e verborrágico deu início à explanação.

-Veja bem! O cara que é um IMBECIL urbano - e quanto digo IMBECIL urbano eu estou me referindo ao “homo urbanu”, esse cara que vive perdido na selva de pedra - na verdade, é um folgado... Um sujeito incômodo... O IMBECIL urbano é aquele cara que ouve o som do celular sem o fone de ouvido e em volume elevadíssimo no ônibus, elevador, sala de espera de bancos, consultórios médicos, de dentistas, repartições públicas, quadras esportivas ou simplesmente caminhando na rua e, às vezes, até em velório... Pensando bem, a IMBECILIDADE desse espécime animal pode ser classificada em diversos graus... Dependendo do ângulo em que você analisa o troglodita, o mal que pode avançar até o nível cinco, ou seja, totalmente irrecuperável.

-‘Tá! E daí? Só isso?

-Não, cara! Tem mais! O sujeito que é um IMBECIL urbano também estaciona em vaga de deficiente físico, gestantes e idosos; estaciona em fila dupla em porta de escola, no meio da rua, em frente à garagem de terceiros e tem um gosto especial para estacionar em frente à rampa para cadeirantes; gosta especificamente de falar alto ao celular em restaurantes e tem um traço característico, que particularmente acho até divertido.

-E que traço seria esse?

-O verdadeiro IMBECIL urbano, aquele que traz no DNA a IMBECILIDADE urbana, gosta, e como gosta de ficar falando alto ao celular ao mesmo tempo em que coça o saco ou bunda. – Dando uma risada, Zé Lúcio complementou. –Esse... O que coça o saco... Apresenta o grau cinco!

-Putzgrila cara! Aí já é sacanagem! Embora eu não fale alto ao celular, eu gosto de coçar o saco quando atendo qualquer chamada, principalmente se eu estou nervoso... Estás de sacanagem comigo, né não? Espera aí... Eu não fico coçando a bunda não!

Rindo a valer Zé Lúcio falou para o amigo.

-E sei meu chapa! Estou te sacaneando... Essa tua coceira no saco é antiga... Ela é pré-celular... Rapaz, já consultou um dermatologista? Isso que você tem no escroto deve ser “ziquizira” das brabas... Quanto ao IMBECIL que coça o saco enquanto grita ao celular é verdade... É uma característica marcante desse tipo de animal... Grau cinco e acabou!

Um pouco ofendido pela última colocação do amigo, Romualdo perguntou.

-E quanto ao IDIOTA urbano... Acho que a denominação é bem apropriada né? Se existe o IMBECIL urbano, é claro que deve existir um IDIOTA semelhante...

-É claro que existe o IDIOTA urbano... A gente vai chegar lá, porém, tem outras características para identificar, de imediato, um IMBECIL urbano.

-Ah é? E vossa senhoria pode se dignar a falar-me quais são? Ironicamente Romualdo perguntou ainda fingindo-se ofendido com o amigo.

-É claro que eu vou te dizer... Por exemplo, o IMBECIL urbano adora andar com os óculos de sol colocados na testa ou na nuca, mesmo quando anoitece, sempre por cima de um boné com a viseira voltada para trás. Gosta ainda de ouvir som “bate estaca” ou “tecno”, como queira, no carro, claro, em volume elevadíssimo... O barulho é insuportável... Esse, eu classifico de grau quatro... Veja bem, o tonto gosta também de apor “insufilm” com grau de transparência abaixo dos 28%, ou seja, você não vê o IMBECIL dentro do carro, ele, ao contrário, lhe vê, com dificuldade, mas vê... E tem mais... Ele também adora “adesivar” o carro com frases ou palavras tipo: “DEUS É FIEL” ou “FUI!”.

-Sim! E daí, cara? A palavra “FUII”, realmente, é de uma imbecilidade sem tamanho, porém, “DEUS É FIEL” até que é legal!

-Romualdo, mermão! Como é que Deus em sua onisciência e onipotência vai ser ‘fiel’ (sic) a alguém, cara? Deus é simplesmente... DEUS, meu rapaz! É justamente ao contrário, meu jovem! O crente é que tem que ser fiel ao seu Deus, não importa o credo que ele professe...

-Huumm...! Olhando por esse prisma... Mas, continuo perguntando... E daí..???

-E daí? Daí é que quando ele percebe que você está incomodado com o som insuportável vindo do carro do IMBECIL, mesmo com os vidros fechados, ele dá uma risadinha de “perereca chapada”, abaixa os vidros do carro e aumenta o volume... E aí, meu camarada! Você quase perde quaisquer resquícios de civilidade dada a gana quase incontrolável que você sente de esmagar aquele “inseto” ao teu lado e que te olha com um sorriso IMBECIL e cara de “noiado”.

-Pô, meu camarada! Acho que você está precisando de férias... Mas... De qualquer forma... Gostei da tua definição para o IMBECIL urbano... E o IDIOTA urbano? Qual é a definição dele?

-Praticamente a mesma para o IMBECIL... Somente apresenta um detalhe, que, no fundo, no fundo, é de vital importância.

- E que detalhe de... Vital importância seria esse?

-Veja bem...!!! O espécime IMBECIL urbano é um tonto, um louco manso... Incomoda mas não faz mal a ninguém... Perturba somente...

-Ah é? Não sabia que perturbar a paz dos outros é uma coisa tão banal assim...!!!

-Pois é...! O espécime, IDIOTA urbano, ao contrário, é um louco potencialmente perigoso... Quase um psicopata e, por incrível que pareça, um potencial suicida também... Oferece risco para ele e para os que, inadvertidamente, estão próximos dele... Ali, pela vizinhança... Pelas cercanias...

-Como assim?

Zé Lúcio pegou a caneca de chope, bebeu o resto da bebida, aguardou o garçom servir os acepipes, pediu outra caneca, cumprimentou uma loirinha magrela que sorria para ele, de certo o reconhecia de algum lugar que ele não se lembrava de onde; destrinchou um pedaço do peito do pato e levou-o à boca, depois tomou umas duas colheradas do caldo do tucupi, mordiscou umas folhas de jambu, estalou a língua com satisfação, recostou-se na cadeira, sorriu e continuou a singular descrição dos tais espécimes urbanos:

-Vejamos o seguinte, meu amigo Romualdo... O espécime IMBECIL você já conhece, é um louco manso como eu disse... Já o IDIOTA... Minha Mãe do Céu...!!! O espécime IDIOTA, além de IMBECIL também é doido, cachorro louco mesmo... Meu camarada, o cara gosta de atravessar o sinal vermelho, dirige bêbado, faz racha nas madrugadas e só dirige em alta velocidade ultrapassando os outros carros pela direita e pela esquerda – para ele não existe regras de trânsito - e, quando não tem espaço, ele avança pela calçada mesmo, ou de carro ou de motocicleta...

-Caramba, Zé! Mas isso todo jovem faz...

-Nananinanão! Esse é o IMBECIL jovem que ainda não ficou completamente IDIOTA... Esse, ainda pode ser recuperado... O IDIOTA verdadeiro, o PO, o puro de origem... Esse não tem mais conserto... O pior, cara! É que em sua grande maioria, esse tem dinheiro, posição social, dirige carros caríssimos, normalmente bólidos, e, o maior contingente, é formado de profissionais bem sucedidos... Muitos deles são juízes, delegados, altos executivos bancários... Lembra-se daquele IDIOTA gaúcho? Aquele que atropelou um bando de ciclistas? E o psiquiatra, que, mais bêbado que um gambá atropelou umas pessoas na calçada e depois foi flagrado jogando uma garrafa de cerveja fora?

-Taí! Eu pensava que esses caras eram somente irresponsáveis... Caraca!

-Romualdo, todo IDIOTA urbano é IRRESPONSÁVEL e redundantemente inconsequente... O cara veio para o mundo a passeio, meu jovem! Para ele, o resto da humanidade só existe para servir e aplaudi-lo... Por exemplo, ele não respeita faixa de pedestres, suborna e é subornado facilmente... É só prestar atenção aos corruptos que estão sendo julgados no MENSALÃO... Dá-lhe Joaquim Barbosa...!!! Meu camarada, o IDIOTA urbano é tão burro, tão burro, que quando ele vai para academia de musculação malhar, ele não malha para ficar com o corpo saudável, ele vai atrás de “bombas” para inflar os músculos mais rapidamente para se exibir; nem que para isso ele tenha que arrebentar com fígado, o coração, o baço ou os rins dele... E achando pouco, ele ainda coloca silicone na bunda, no peito e na batata da perna... Pode uma coisa dessas??? Ah, sim! Lembrei-me de outra faceta tenebrosa desses caras...

-Qual?

-Preconceito! O indivíduo que é IDIOTA urbano é, acima de tudo,

PRECONCEITUOSO! Tudo que está fora da zona de conforto dele o incomoda... Quer exemplos? Ele acha que lugar de mulher é na cozinha... Que o pessoal do GLTS tem que levar pancadas juntamente com os negros, judeus, índios e mendigos...

-Hummm...!!?

-Podes crer!

Romualdo depois de levar o garfo à boa com um bocado de pirarucu desfiado e de engolir o acepipe com um gole de chope, olhou para o amigo e comentou:

-Caramba, Zé Lúcio, tu não achas que estás pegando pesado demais, não?

-Que nada, meu rapaz! E falando em IMBECIS e IDIOTAS, dá uma olhada ali no estacionamento da lanchonete... Olha só! O do lado esquerdo é o IMBECIL... Olha só! Estacionou na vaga do idoso... O do lado direito é o IDIOTA... Chegou dando “cavalo-de-pau” e acelerando alto...

-Onde?

-Ali, cara! Perto daquele fusquinha caindo aos pedaços... Olha bem que você vai ver dois perfeitos exemplares de IMBECIL e de IDIOTA... Engraçado, um de cada lado do estacionamento... Olha lá, aquele sujeito com óculos escuros na testa, por cima do boné com a aba virada para trás, camiseta “baby look” e calça justinha, modelo “espoca ovo”...

-‘Tô vendo!

-Quer apostar como ele vai abrir o porta-malas e ligar o som do carro com música “bate estaca” em alto volume, depois vai pegar uma garrafinha de “ice”, cruzar os braços, apoiar o corpo na perna direita e colocar a perna esquerda para frente e vai ficar olhando meio de lado para as meninas da lanchonete? Esse aí é um espécime de IMBECIL nível três.

-E o outro, Zé! É um espécime IDIOTA?

-Perfeitamente! Esse espécime é um IDIOTA... Ele vai descer da camionete, abrir o porta-luvas, pegar uma garrafa de bolso de uísque, uma lata de energético; vai tomar o energético até a metade e depois vai completar com o uísque... O IDIOTA talvez até saiba que o energético ativa o cérebro e o uísque, ao contrário, entorpece... O que, certamente, dá um “nó” nos neurônios e interrompe as sinapses entre eles, mas ele não está nem aí... Ele é jovem, poderoso e tem o pai rico, o resto que se dane.

-Caceta, Zé! Os caras fizeram exatamente como você descreveu... Mãe do céu! O barulho ficou insuportável... Agora “bosteou” de vez... Acho melhor a gente terminar de comer o pato e o pirarucu, pedir a conta e cair fora.

-Calminho aí, Romualdo! Olha lá, o IDIOTA...! Ele também gosta de ser IMBECIL... Olha só... Ele vai voltar para o carro, depois vai dar uns dois cavalos-de-pau que para chamar a atenção... Vai tirar a capota da camionete, levantar a bateria de caixas de som e vai ligar, ele também, o som do carro dele... Quer apostar como ele vai colocar o “hit” do momento entre os IMBECIS?

-Vou dar uma de Sílvio Santos... Qual é a música, Zé?

-Ele vai colocar para tocar “AI SE EU TE PEGO” do Michel Teló... Duvida?

-Bingo! Na mosca, Zé!

-Pois é! Em razão dessas e outras é que eu resolvi fazer um neologismo, ou seja, criar uma palavra nova para designar esse tipo de animal, esse espécime de “jumento batizado”.

-Qual palavra, Zé?

Zé Lúcio riu divertido enquanto chamava o garçom para pedir a conta e falou:

-INDIÓTA! Isso mesmo! Uma palavra paroxítona com acento agudo indevido no “Ó” que é para dar uma conotação bem marcante à expressão... “IN” substituindo o “IM” de IMBECIL em junção ao “ÓTA”... Sim! Com acento agudo indevido, sim... De IDIOTA... "INDIÓTA!" Para mim, identificação perfeita para o IDIOTA que apresenta traços marcantes de IMBECILIDADE... Falei?

-Falou e disse! Garçom... Traz a maquininha, vamos pagar com cartão.