EM ALGUM LUGAR NO PASSADO...

Este texto foi inspirado no trabalho de mesmo nome da consóror Maria Mineira.

Diariamente antes do início das aulas todas as turmas ficavam em forma para cantar os hinos de Pernambuco e Nacional enquanto as bandeiras eram hasteadas, do Brasil por um professor e a de Pernambuco por um aluno que tivesse se destacado dos demais pelas notas e ou comportamento.

Os alunos ficavam arrumados de acordo com a turma, começando pela de Admissão ao Ginásio, depois o primeiro, o segundo, o terceiro e o quarto ano Ginasial.

Depois, em fila indiana e em silêncio, nos dirigíamos para as salas a fim de assistir as aulas que compunham a grade curricular, para os do segundo ano, minha turma, eram onze matérias, entre elas Canto Orfeônico.

Naquele tempo o aprendizado era dividido nos cursos Primário, com quatro anos, Admissão ao Ginásio, um ano, Curso Ginasial, com quatro anos, Nível Médio, com três, onde havia a possibilidade de se ter um diploma de técnico em Contabilidade ou Pedagógico (que habilitava principalmente as moças para lecionar no Curso Primário), Clássico para quem queria seguir as carreiras sociais como Direito, Filosofia, Línguas, Sociologia etc. e Científico que preparava para os cursos das Ciências Exatas e da Natureza.

Concluída essa parte, mediante aprovação no vestibular, os Cursos Superiores, Mestrados, Doutorados e pós-graduações lato senso.

Mas nesse dia haveria novidade porque o Diretor estava lá, perfilado junto aos professores durante a execução dos hinos e hasteamento das bandeiras e, antes que o encarregado da disciplina nos mandasse para as salas o Diretor disse:

- Este ano nossa páscoa será realizada no segundo domingo de maio.

Houve, entre os alunos, um burburinho pelos comentários a meia voz. E o colérico e mal educado Diretor disse aos gritos.

- Fecha a lata! Não admito comentários nem conversas enquanto eu estiver falando.

E num tom mais contido, continuou.

- Vocês terão praticamente quinze dias para os preparativos para a páscoa e para organizarem o café da manhã com seus colegas de turma. O Pe. Romeu fará uma palestra, com presença obrigatória, na próxima sexta-feira, ao meio dia, aqui no salão. É só. Podem ir, em ordem, para as suas salas.

A partir desse momento todas as oportunidades que tivemos para conversar, o assunto foi o que iríamos fazer.

- Vamos fazer uma rifa para arrecadar dinheiro para a decoração...

- Não. É muito melhor cada um contribuir com Cr$ 10,00...

- Isso vai dar uma merreca que não vai dar para comprar nada.

- Oh! Burrinha, somos cinquenta na turma. Cr$ 10,00 de cada um dá Cr$ 500,00

- Não dá para nada...

- Que enfeite caro da moléstia é esse que você quer?

- Eu quero rosas naturais...

- Não senhora. A gente se junta e faz flor de papel crepom...

- Oxe, vai ficar parecendo enfeite de defunto.

- Eu sei fazer flor de papel muito bem. Minhas flores são elogiadas por todo mundo, minha filha...

- A gente pode pegar folhas de samambaia e botar para secar e depois pregar areia prateada nelas...

- De jeito nenhum. Isso é enfeite de casa de pobre...

- Oxe! Oxe! De onde saiu essa riqueza toda...

- Eu posso trazer o jarro grandão de mamãe para botar em cima da mesa.

- Na minha casa tem uma mesa de ping-pong.

- E teu pai deixa a gente trazer?

- Se for todo mundo lá pedir, ele deixa.

- Minha mãe tem uma toalha branca bordada que a gente pode forrar a mesa.

- Está todo mundo brigando e ninguém falou nas comidas.

- Eu sei fazer brigadeiro.

- Era bom trazer cachorro quente...

- Deixe de ser idiota. Onde é que a gente vai esquentar a carne? Vai

comer cachorro frio, é?

- No fogão da cantina.

- Vai estar fechada, abilolado.

- Minha mãe sabe fazer sanduiche de camarão disfarçado.

- Ah! Eu já comi. É uma delícia.

- E esse sanduiche se come frio.

- Quem é que vai trazer bolo?

- Eu posso pedir a minha mãe para fazer um.

- Um é pouco. Tem muita gente.

- Eu vou trazer Q-Suco de morango.

- Não senhor, é melhor o de maracujá.

- Só trago se for de morango.

- Pois eu vou pedir a minha mãe para fazer a torta salgada que ela sabe fazer e não vou dar nenhum pedaço a ninguém.

- Por mim, pode socar...

Paulo Fernando, um dos mais exaltados, batendo com a mão espalmada na mesa do professor, gritou a plenos pulmões:

- Atenção... Atenção... Silêncio presta atenção, um minuto de atenção, por favor.

Ante o inusitado, todos pararam de falar ao mesmo tempo e se viraram para o local de onde vinha a ordem:

- Muito obrigado pelo minuto de atenção...

- Palhaço!

- Idiota.

E Marilourdes saiu correndo atrás do engraçadinho para dar-lhe umas tapas.

- Bandeirinhas! Vamos comprar papel de seda. Eu sei fazer bandeirinhas de papel para enfeitar a sala, só preciso que me ajudem.

- E sei fazer grude.

- Oh! Imbecil, é páááscoa. Não é festa de S. João não.

- Eu detesto gente burra metida a fazer as coisas.

- Se deixar por conta de cada um, só vai sair merda.

- Pois pode socar essa merda dessa festa que eu não participo mais de merda nenhuma...

E assim transcorreram as duas semanas...

Nas aulas de canto orfeônico, o professor Luciano ensaiou a Ave Maria que seria cantada pelos alunos de todas as turmas, divididos em quatro vozes.

AVE MARIA,

CHEIA DE GRAÇA

MÃE COMPASSIVA,

DOS PECADORES,

VOLVE TEUS OLHOS,

À HUMANA RAÇA,

QUE VÊS CATIVA

DE TANTAS DORES.

Letra curta, melodia fácil, que devia ser repetida durante toda a comunhão.

O professor testou os alunos em todas as classes para escolher os solistas que iniciariam o cântico e os escolhidos foram Risolânia e eu.

Ensaiamos até a exaustão para que tudo desse certo.

Com a farda engomada, em jejum, durante a missa, onde eu fiz a minha primeira comunhão, as nossas vozes adolescentes encheram de harmonia festiva, aquela manhã do segundo domingo de maio de 1956, que ainda permanece viva em algum lugar do passado...

GLOSSÁRIO:

Cr$ = símbolo de cruzeiro

Areia prateada foi substituída por gliter de diversas cores.

Abilolado = tolo

Camarão disfarçado = cheiro verde com tomate e cebola, liquidificado com leite de coco.

Flor de papel = naquele tempo ainda não havia no mercado as flores chinesas.

Grude = cola feita com polvilho e água fervente.

Q-Suco = pó industrializado para refresco.