A barba desgrenhada (paráfrase de "o nariz")
Trabalhava como gerente comercial. Com seus cinquenta e poucos anos, casado pela segunda vez, três filhos, sendo que somente a filha mais nova morava com ele. Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes, mas uma sólida reputação como profissional e cidadão. Sempre teve o rosto liso, fazia a barba todo o dia, mantinha o cabelo bem cortado e rente. Um dia, acordou, foi ao banheiro, olhou-se no espelho e decidiu não pegar o aparelho de barbear. E assim fez nos dias seguintes. No sábado, não foi ao salão, aparar o cabelo. E não foi nos seguintes também. A mulher e a filha estranharam e viviam perguntando se ele pensava em mudar a aparência. Passados alguns meses, o cabelo e a barba desgrenhada já chamavam a atenção. Perguntavam se era promessa.
Sentou-se à mesa do almoço – sempre almoçava em casa – com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com aquela barba e cabelos enormes.
- Até quando você vai ficar com essa aparência ridícula? – perguntou a mulher depois da salada, olhar sério.
- Aparência ridícula?
- Essa sua barba branca e esse seu cabelo. Vai trabalhar de Papai Noel no Natal? Vai ser engraçado um Papai Noel magricela.
- Ah. Eu resolvi não me preocupar mais com isso.
- Logo você, papai… Falou a filha
Depois do almoço, ele foi recostar-se no sofá da sala, como fazia todos os dias. A mulher impacientou-se.
- Tira esse negócio.
- Por quê?
- Brincadeira tem hora.
- Mas isto não é brincadeira.
Sesteou tranquilamente. Depois de meia hora, levantou-se e dirigiu-se para a porta. A mulher o interpelou.
- Aonde é que você vai?
- Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o escritório.
- Mas desse jeito?
- Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura. – Se fosse uma gravata nova você não diria nada. Só porque deixei a barba…
- Pense nos vizinhos. Pense nos clientes.
Os clientes, realmente, não compreenderam a mudança de visual. Deram risadas (“Logo o senhor…”) faziam perguntas, mas terminavam a negociação intrigados e saíam do escritório com dúvidas.
- Ele enlouqueceu?
- Não sei – respondia a secretária, que trabalhava com ele há 15 anos. – Nunca o vi assim. Acho que está pagando promessa.
Naquela noite ele tomou seu chuveiro, como fazia sempre antes de dormir. Depois vestiu o pijama e foi se deitar.
- Você não viu o aparelho novo de barbear que deixei prá você? – perguntou a mulher.
- Vi. Vi e joguei no lixo. Aliás, não vou mais tirar essa barba.
- Mas, por quê?
- Por que não?
Dormiu logo. A mulher passou metade da noite olhando para aquele rosto cheio de pelo. De madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por uma barba de mendigo.
- Papai…
- Sim, minha filha.
- Podemos conversar?
- Claro que podemos.
- É sobre essa barba…
- Minha barba outra vez? Mas vocês só pensam nisso?
- Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra um homem como você resolve ficar desleixado e não quer que ninguém note?
- A barba é minha e não vou mexer nela.
- Mas, por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço do prédio? Eu não posso mais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social.
- Não tem porque não quer…
- Como é que ela vai sair na rua com um homem que parece o avô dela?
- Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. Uma barba não faz nenhuma diferença.
- Se não faz nenhuma diferença, então por que não tirar?
- Se não faz diferença, porque não deixar?
- Mas, mas…
- Minha filha…
- Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai!
A mulher e a filha pararam de falar com ele. Ele perdeu alguns clientes. A secretária, que trabalhava com ele há 15 anos, pediu transferência. Não sabia como olhar para um rosto que para ela parecia sujo. Evitava aproximar-se dele. Os amigos mais chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar um psiquiatra.
- Você vai concordar – disse o psiquiatra, depois de concluir que não havia nada de errado com ele – que seu comportamento é um pouco estranho…
- Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele. – Eu continuo o mesmo. Noventa e dois por cento de meu corpo continua o que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de pensar, nem de me comportar, Continuo sendo um ótimo profissional, um bom marido, bom pai, contribuinte, sócio do Corinthians, tudo como era antes.
- Mas as pessoas repudiam todo o resto por causa desta barba. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou a minha barba?
- É… – disse o psiquiatra. – Talvez você tenha razão…
Mas ele não agüentou por muito tempo mais. A mulher e a filha já não conversavam com ele. Já não saiam mais juntos.
Uma bela manhã, ele se olhou no espelho, pegou a tesoura, a máquina de cortar cabelo e o barbeador.
Diferente do personagem de Luiz Fernando Veríssimo, ele não aguentou e teve que sacrificar seus princípios para manter o relacionamento familiar. Amava a esposa. Fazer o que ...