ASSIM, AMOR

- Visita de médico?

Ela pôs o indicador sobre os lábios dele, fez “shhh” e deu-lhe um beijo fundo, empurrando a porta para fechá-la. Depois pegou-lhe nas bochechas, o que significava dizer: “temos pouco tempo para gastar com reclamações”.

- Quero água.

Ele já poderia ter se antecipado e aberto a porta com um copo d´água na mão, que ela sempre pedia quando chegava. Mais algumas vezes e ela poderia achar falta de sensibilidade.

- Como está o trabalho?

Ele perguntava porque sabia que ela era massacrada no trabalho. Carregava o setor nas costas, não recebia reconhecimento de ninguém e ainda levava algumas broncas de vez em quando, que a deixavam deprimida. Mas fazer o quê? Era dele que ela tirava o colégio dos filhos e os carrinhos de supermercado.

- Todo dia uma exigência nova. Um campo de concentração.

Ele se ofereceu para preparar alguma coisa, ela não quis. Segurou as mãos dele, olhou-o, sorriu e puxou-o para o quarto.

- Tenho pouco tempo.

Amaram-se com o despertador ligado. O tempo contra eles quando ela ia ali. O tempo contra eles sempre. Meia hora. Uma hora. Duas horas eram uma eternidade.

- Minha casa é só uma passagem na sua vida.

Ela já ouvira aquela frase dele várias vezes. E sempre se aborrecia com ela. Ele não reconhecia o seu esforço para estar lá, não reconhecia os perigos que corria para lhe dar atenção. Ele, um eterno egoísta, pensava que o mundo inteiro tinha a sua disponibilidade, a sua condição.

- Você não entende. É aqui que eu sou feliz.

Ela falava a verdade. O casamento perdera o sentido e o prazer havia alguns anos, os filhos iam crescendo à sua revelia, o trabalho sempre infame, poucos amigos, poucos parentes. O que lhe restava para escapar de uma vida ordinária? Restava aquele quadrado de tijolos, no décimo quinto andar de um prédio numa rua movimentada de cidade grande. Ali ela recuperava a felicidade, a emoção de sentir-se amada, desejada, a liberdade de poder falar o que bem quisesse e de nunca ouvir repreensões, a sensação de que a vida ganhava um significado, de novo.

- Também quero ser feliz. Só que por completo.

O que ele chamava de ‘por completo’ era a possibilidade de estar com ela sem se esconder de ninguém nem de nada. Era só a liberdade de poder amá-la.

- Um dia, baby, um dia.

Ela já falou isso alcançando a toalha. Ele ficou deitado ouvindo a água cair no chuveiro e esperando soar a campainha do despertador. Para ele esse dia não chegaria nunca. “Meu trabalho, meus filhos, minha família, minha reputação” eram os argumentos que ela sempre usava para pedir que tudo ficasse como estava. E ele se convencia pela absoluta impossibilidade de ser de outro modo. Amava. “Quem ama faz sacrifícios”, era no que acreditava para se consolar mais rápido.

- Semana que vem vai ser melhor. Prometo.

Ela o beijou e saiu apressada. Semana que vem talvez conseguisse meia hora a mais para eles.