Sexta-feira
 
No próximo feriado juntarei meus livros, papel, caneta, meus sonhos e pensamentos e partirei para o meu tão esperado descanso do feriado longo. Sítio, árvores, água da fonte, fogão de lenha, sons da natureza, silêncio noturno. Tudo perfeito para quem não gosta de muita badalação. Dentre os livros separados para as minhas horas de leitura estará “Felicidade clandestina”, livro de contos de Clarice Lispector. Resolvi reler o livro sem me preocupar com uma leitura linear da seqüência dos contos presentes nele. Estou lendo um a um me deliciando com as narrativas acompanhadas pelos meus olhos até que me deparei com “O ovo e a galinha”. Clarice Lispector não é uma escritora superficial, se você não quiser ler superficialmente claro. Ela tem nas letras de seus escritos algo que remete ao maravilhoso e insuportável da alma humana, algo que, parafraseando Mário de Andrade, não é escrito para olhos mudos lerem.
     Noite passado quando iniciei ler o conto, parei, recomecei, remexi, fui e voltei. E em cada uma dessas idas e voltas estava sempre pensando em algo. De início pensei: “Até parece um tratado filosófico sobre o ovo”. E, entre o ovo e a galinha, acabei me deparando com as minhas próprias reflexões. Afinal, descanso que é descanso, se tem leitura, acaba inquietando a alma. Corpo descansado, mente deslumbrada e reflexiva, alma inquieta. Devo ter me sentido assim. “E eis que não entendo ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira”.
E eis que não entendo a alma. Só entendo a alma em pedaços. Estraçalho-a. Quando quebramos um objeto fechado, como o ovo, acabamos vendo o interior, a essência, o que realmente é, sem casca. Entendemos o interior justamente quando o vemos quebrado, despedaçado. Olhando cada pedaço nos faz entender melhor ainda, nos faz ver o que inteiro não nos permite. Ovo inteiro, superfície a mostra, cor e forma. Ovo quebrado, essência, consistência, cheiro. Clara e gema.
     Alma quebrada é assim. Lá está o lugar certo de onde é gerado o sentimento, o cantinho do riso, a morada dos medos, o que é melhor não vê porque assusta, gruda, cheira mal. Ovo quebrado, ovo transformado. 
     Na alma inteira se vê a beleza numa inconstante incerteza, quebrada   se vê o que é, não o que se supunha querer ser. Lá está o que ultrapassa, transpassa e nos leva a nós mesmos. Que sensação dolorosa! Viver tem dessas coisas de ver um ovo e analogamente compará-lo a alma. E é isso que faz a nós simples seres mortais suportar enxergar, ao menos um pouco, o que a lógica não nos permite e sentir o que a matéria por si só seria incapaz.
        Já está quase amanhecendo... Com uma imensa espiritualidade passo (ela despertou) das palavras aos movimentos e ruídos do sexo carnal e nos entregamos à realidade num ritual carmim, púrpura, escarlate...