JACIRA
Jacira
Sorocaba é uma cidade mais velha do que São Paulo, tropeiros passavam por lá nos setecentos de um Brasil criançola que ainda é meio criançola. Na minha meninice também eu passei por lá, nas férias, nos carnavais, também eu era tropeiro que ainda estava por abrir caminhos, e isso foi no tempo em que o Brasil ainda tinha tempo, eu já disse isso em algum lugar. E nesse tempo, minha tia Jacira esperava a gente nas férias, é sempre bom quando alguém espera a gente com interesse e alegria que esse interesse e essa alegria compõem, mais tarde, pílulas de contentamento, resignação e força quando a vida, sem mais aquela, vira uma megera ridícula. Nessa hora, você pede licença e sai da sala de estar da vida, vai à cozinha, toma um copo d’água do pote de barro engole a pílula e volta pra conversar com ela, menos triste, mais esperançosa, até agüenta o mau humor dela, faz de conta que eu não vejo, vou indo, vou cercando, vou alinhavando. Só que não pode ser qualquer interesse e qualquer alegria, óbvio que têm que ser verdadeiros, que a vida não é boba, não se tente enganá-la com manifestações de mentirinha. E eis que minha tia Jacira me esperava com interesse e alegria que nenhum dinheiro do mundo pôde ou pode comprar. A tia era pequena e delgada, olhos pretos de azeviche, trabalhava sem parar, sem querer parar, pois que existem pessoas que sabem o que fazer do passado, presente e futuro e estão muito contentes com isso, tem gente que alinhava e faz a bainha, tem gente que só alinhava. E essa tia, morava numa casa com corredor
comprido na rua da Penha, nessa velha Sorocaba. Muito antes, havia uma casa numa outra rua, nos idos de quarenta e sete, eu era bem pequena, mas me lembro da clarabóia que iluminava o corredor de entrada, do porão encantado onde eu conversava com um cavalo de balanço, um fogão à lenha, um tapete de linóleo e uma boneca sobre a cama com vestido verde de veludo, um quadro na parede com casinha de lenhador, talvez se lesse que o mundo inteiro não vale o meu lar ou algo do gênero, preciso perguntar para as primas. Nas tardes de visita à essa tia, eu brincava num jardim em frente à casa, imenso aos meus olhos de criança, com um caramanchão, bancos e um coreto. Não me lembro bem o que eu pensava ao ver aquele jardim tão grande, sei que não eram coisas desse nosso mundo, criança vai de um mundo à outro com muita facilidade, vai pulando, pulando... De criança a tia entendia bem, era parteira e trouxe ao mundo muita gente, muita gente mesmo. Depois virou uma médica autodidata. Tenho saudade de minha tia. Do lanche que ela fazia às três horas da tarde onde todo mundo ficava em volta da mesa conversando e rindo, meu tio Miguel falava pouco e sorria, tia Ermínia passava pelo corredor e ouvia-se o barulho de seus chinelos de feltro, tinha um bigodinho e o cabelo branco, em coque, o tempo ainda era doce. Um coração jovem se alegra com o interesse de uma tia; que eu seguisse um curso superior, de quando me comprou um colar de contas de vidro cor-de-rosa, num tempo em que eu precisava ver a vida nessa cor e mandou trazer um perfume com meu signo para atrair o rapaz que me interessava que eu também precisava de romance. E nos carnavais, aguardava todos nós com cafezinho sobre a toalha xadrez quando voltávamos de manhãzinha cansados e suados, numa época em que o carnaval era uma festa para se ser feliz, para juntar família e amigos, nem que fosse só por três dias. De vez em quando, eu pedia para ajudá-la na limpeza da casa e ela sorria por ver meu interesse. Tenho saudade de minha tia Jacira. De me chamar de belezura, numa época em que precisávamos ser chamados assim. Ela sabia disso. Do que precisávamos no presente, do que iríamos precisar no futuro. Tenho mesmo, muita saudade da tia Jacira. Do quadro do Coração de Jesus com uma lamparina sempre acesa, do seu passo suave, seu avental branco, sua inteligência, da sua amizade por mim; eu era a belezura, a belezura, ela dizia quando eu dizia algo engraçado. Toda mocinha deveria ouvir isso, sentir isso, guardar isso. Toda mocinha deveria ter tido uma tia Jacira. Imprescindível.