A PRAÇA
O mendigo está bêbado.
A prostituta procura afoitamente por um parceiro.
O médico mostra-se angustiado, quase em desespero. Tem a
mão direita dentro do uniforme branco, junto ao tórax, protegendo
um objeto oculto.
No último toque das doze badaladas, surge, aparentemente do
nada, um homem rústico. Cabelos longos e olhar manso como os de
um cordeiro. Aproxima-se do mendigo.
– Posso ajudá-lo, amigo? – indaga, colocando-se frente ao
pobre homem, que levanta os olhos lentamente.
– Ajudar-me? Ajudar-me por quê?
– Porque todo ser humano merece ajuda. – responde o recém
chegado.
– Havia me esquecido de que espécie sou, é verdade, sou
humano... – breve silêncio, o mendigo continua. – Mas, creio que
não mereço ajuda.
– Eu digo que sim, nenhum homem, por mais erros que tenha
cometido, pode ser abandonado e jogado na latrina, como ocorre
com você.
– Latrina?
– Vaso sanitário.
– Privada? É isso, você tem razão, sou mesmo um monte de
merda, perdi a vontade de viver e creia-me, não mereço ajuda,
porém, se a quisesse, como poderia me ajudar? – indagou o pedinte.
Um sorriso largo se estampou nos lábios do homem de cabelos
longos.
– Mostrando-lhe a essência da vida, o verdadeiro motivo de
estarmos aqui. – murmurou o pregador, suavemente.
– Estranho! Você fala como padre, eu não gosto de padres.
– Por que não?
– Por que falam muito e fazem pouco. Por acaso é um deles? –
perguntou o mendigo.
– Não! Não preciso ser um religioso para mostrar seus erros,
tenho, simplesmente, que falar a verdade e mostrar-lhe outros
caminhos para que possa segui-los.
– Outros caminhos, não há outros, já conheço todos. Sei o que é
bom e o que é ruim. Não quero nada desta vida, a não ser esperar a
morte, eu e a minha companheira. – o mendigo tão logo terminou a
frase, retirou uma garrafa de aguardente de uma sacola de trapos.
– Você pensa que conhece todos os caminhos, mas, na verdade,
sempre seguiu um só. Os caminhos de nossa vida são difíceis e
sempre seguimos por aquele que achamos mais fácil. Você tem
medo de mudar o seu trajeto, tem medo de fracassar, tem medo de
perder o que conquistar, é por isso que prefere ficar sentado,
bêbado, esperando pela morte. Esquece que o corpo morre, que o
corpo apodrece, mas que seu espírito fica imaculado, sem receber
um pequeno risco sequer, é ele quem sofre ao ver seu invólucro
apodrecendo e esperando que os vermes o consumam. O mendigo
fez cara de nojo, cuspiu o escarro no chão e tomou um longo gole da
bebida.
– Quer dizer que você acredita que eu tenho um outro Eu
dentro de mim, que tenho alma. É isso?
– Sim, é isso. Se você não tivesse algo com que se preocupar na
vida ou depois da vida, por que viver?
– Mas, não fui eu quem pediu para nascer.
– Claro que foi. A vida é composta de duas partes. Você tem
duas partes entrelaçadas em seu corpo, uma veio do seu pai e a
outra da sua mãe. Eles foram os arquitetos do seu corpo, mas a
célula se multiplicou milhões de vezes, poderia ter morrido.
Poderia ter se decomposto, mas não, você estava presente, você
queria ser um homem, você foi o adubo da união do
espermatozóide e do óvulo. Você queria nascer, mas, infelizmente,
não soube aproveitar a vida que lhe foi oferecida.
– Oferecida? A vida não oferece nada. Perdi meus filhos, perdi
minha esposa, perdi meus bens. O que sou? Apenas um bêbado, um
pedinte, um homem que não vale o que come.
– Engano seu, toda vez que perdemos algo que muito
estimamos, parece que um imenso abismo se abre entre nós e a
vida. Os fracos se entregam, e continuam a se afundar, cada dia
mais, nesse abismo imensurável. Outros, entretanto, procuram,
buscam, lutam, e conseguem repor tudo o que perderam. É uma
jornada difícil, dolorosa, quase insana. São poucos os que
conseguem seguir o caminho de volta e recuperam tudo o que
perderam. Você, infelizmente, escolheu o caminho mais fácil,
preferiu buscar a morte, ao invés de ir de encontro à vida. A morte é
algo simples, tão simples que já nascemos em busca do seu abrigo.
A vida não, ela é difícil, lutar é um dom, correr riscos é uma arte,
errar é aprender. Só quem erra consegue viver e distinguir o certo
do errado, não venha me dizer que você sempre quis ser um
bêbado, um mendigo, um homem sem valor perante a sociedade,
ou será que estou enganado?
A prostituta ouvia de longe o diálogo e se aproximou. A voz do
homem de cabelos longos ecoava por toda a praça, não aos gritos ou
aos brados, mas, estonteantemente suave, e extremante carinhosa.
O médico, ainda segurando um objeto rente ao corpo, também veio
ouvir os seus ensinamentos.
– Dar conselhos é fácil, o difícil é pô-los em prática. –
argumentou o médico.
– Verdade! Mas o pior é fugir dos problemas, como você está
fazendo.
– Eu?! – retrucou o médico, retirando a mão de dentro do
uniforme branco e apontando para si mesmo.
– Sim! Você, você que tem o dom da morte, mas não o da vida.
Um ser humano pode morrer por uma cirurgia mal feita, isso o
torna um homem, você pode curar outros, isso o faz um bom
profissional, mas, nunca fará de ti um Deus.
– Mas eu tenho o poder da cura. – retrucou o médico.
– Não, você faz apenas aquilo que lhe foi ensinado, você é
apenas um instrumento e sua habilidade depende de anos de
estudo. Somos sim deuses, mas deuses do nosso próprio corpo, não
do corpo alheio. Caso não se sinta em condições emocionais para
fazer uma cirurgia, chame um outro em melhores condições para
fazê-la, nunca relegue a vida humana a um caráter experimental,
achando que você é o melhor e que, mesmo estando psicologicamente
abatido, será capaz de efetuar seu trabalho dignamente,
sem colocar o paciente em risco.
– Foi o que eu fiz.
– Eu sei.
– Como sabe?
– Não importa a interrogação, mas sim a solução. Além do
mais, não acredito que um suicídio resolveria os seus problemas.
– Suicídio! Quem lhe disse que pensei nessa possibilidade?
O homem de cabelos longos se aproximou com cautela, não
tinha medo, mas sabia que a fisionomia transtornada do médico
significava que ele poderia entrar em colapso a qualquer momento.
– Eu sei o que trás junto ao corpo.
O médico riu. A prostituta acompanhou o riso e o mendigo fez
o mesmo.
– Impossível!
– Você trás uma arma, comprou-a ainda hoje, e pensa que com
ela resolverá todas as suas dificuldades. Seu filho morreu na mesa
de operação e você se acha culpado, talvez tenha mesmo sido, mas
está se esquecendo que ele morreu, mas que há os filhos de outros
homens que você poderá salvar. Não se prenda ao absoluto, nada é
sempre verdadeiro, nenhuma verdade é pura, real, intocável ou
absoluta. A vida é uma sequência de mudanças, só conseguiremos
vivê-la se nos modificarmos junto com ela. Se ficarmos para trás,
acabaremos tão deslocados que a morte será nosso único caminho,
como verdadeiramente o é, mas podemos adiá-la por um bom
tempo, até que sintamo-nos em condições de encontrá-la, daí,
então, estaremos prontos para um novo mundo.
– Suas palavras são bonitas, mas a vida não é assim tão bela e
fácil. – ponderou a prostituta.
– Não sei se minhas palavras são belas, é você que se sente bem
em ouvi-las, isso prova que antes não havia nada que lhe fizesse
parar para pensar. O importante para você é vender o seu corpo e
arranjar dinheiro com ele, eu digo que não, toda vez que você
manipula o seu corpo e arrecada dinheiro com ele, você perde um
pequeno pedaço de sua vida. Fazer sexo é um direito universal do
homem e da mulher. Vender o corpo é um comércio, você não pode
sentir-se realizada com isso.
– Mas eu me sinto bem.
– Você pensa que sente. Às vezes, lágrimas escorrem de nossos
olhos porque uma grande alegria tomou conta do nosso espírito,
mas todos dizem que as lágrimas provêem das tristezas, como,
então, podemos chorar de alegria?
– Não entendo seus ensinamentos. – murmurou a prostituta.
O homem de cabelos longos sorriu.
– Não é que você não entenda, você tem medo de entender. O
medo é o pior inimigo do homem, quanto mais tememos mais nos
acovardarmos diante da vida. Quero dizer que sua realização não
está no exercício do sexo, e sim no gozo, no prazer que ele
proporciona, e sendo assim, não deveria cobrar pelo que faz.
A prostituta abriu um sorriso matreiro.
– Quer dizer que minha profissão é pecaminosa?
– Não disse isso, o pecado não existe, somos nós que o
concebemos. O que pode ser diante dos seus olhos um fato
pecaminoso, diante dos meus, pode ser uma virtude, depende de
como o vemos. O que digo é que você desperdiça sua vida
oferecendo seu corpo, daqui a alguns anos ele estará flácido,
enrugado, e envelhecido, daí, então, você terá de encontrar um
novo meio de sobrevivência. Por que não tentar encontrar esse meio
agora e usar o seu corpo para uma finalidade mais digna. Faça
amor, ele é belo, ele é puro, mas faça-o pelo prazer de sentir o
orgasmo, e não com uma finalidade comercial.
O bêbado tomou um longo gole e sentiu a bebida escorrer
ardente por sua garganta, queimando suas vísceras.
– Que gosto horrível! – reclamou olhando para a garrafa semicheia
e a jogou, ouviu-se o estilhaçar do vasilhame na quina da
calçada.
O homem de cabelos longos olhou-o fixamente e disse.
– Ela sempre teve esse sabor, é você quem não sente mais
prazer em bebê-la. O álcool quando consumido moderadamente
poderá lhe trazer alegria, amor pela vida, mas, quando o tomamos
em demasia, nos causa vômitos, mal estar e tristeza. Vamos,
levante-se desse submundo em que vive e caminhe em direção a um
novo Eu. Quando um homem busca caminhos diferentes daqueles
que ele está acostumado a seguir, fatalmente, encontrará aliados
que o acompanharão, que lhe darão forças para seguir de encontro à
vida, e saberá, então, que a morte é apenas um degrau de sua
caminhada, que outras vidas virão e novos degraus surgirão. A
cada passo, a cada degrau podemos ou não nos aprimorar
espiritualmente, cabe a cada um de nós escolher o caminho a ser
seguido.
O bêbado levantou-se e com dignidade começou a buscar o seu
novo Eu. Em sua mente, já não havia o desalento, o marasmo do dia-
a-dia. Ele sabia que, ao amanhecer, uma nova oportunidade
poderia surgir, não importava quanto tempo ela demorasse para
aparecer, ele procuraria e, fatalmente, a encontraria.
O médico atirou a arma em um jardim florido. Um contraste
entre a vida e a morte. As flores que recebiam o orvalho da noite
significavam o renascer de novas ideias. A arma a desistência de um
ato que não leva o homem a caminho algum. Viver é enfrentar as
dificuldades, em pé, sem medo, sem temer o que virá. Os erros são
pequenos passos que só serão compreendidos e aceitos com os
acertos. O médico também começou a caminhar, sabia que seu filho
estava morto, mas poderia salvar os filhos dos outros homens, este
tinha sido o seu juramento de profissão. A prostituta, no entanto,
ficou sentada, quieta, cabisbaixa. Parecia absorta em seus
pensamentos, abandonada na solidão da noite. De repente,
levantou o queixo e olhou fixamente para o estranho homem que se
mantinha a sua frente.
– Fiquei só, acho que não terei nenhum parceiro para esta noite.
– resmungou.
Um breve silêncio tomou conta do local, durante muitos anos,
ela havia feito o seu ponto de encontro naquela praça. Tinha de dois
a três relacionamentos por noite e se acostumara com aquela vida.
A rotina fizera dela um ser autônomo. O prazer de fazer amor já
não fazia parte de seu corpo, já não sentia mais o gozo. Satisfazia os
seus parceiros, mas não a si mesma, era apenas um instrumento
que poderia ser manuseado e pago em momento oportuno.
O homem de cabelos longos, olhou-a docemente, havia entre
eles um mistério, talvez já tivessem sido parceiros em uma outra
vida. Ele lhe ofereceu a mão.
– Venha, eu serei o seu companheiro nesta noite. Não aquele
que lhe paga pelo serviço prestado, não faremos sexo, não seremos
um só corpo, mas sim um só espírito. Quero mostrar-lhe que a vida
não é apenas material, que tudo o que passamos tem o seu reverso,
caso aceite os meus ensinamentos, amanhã será uma nova mulher,
caso não aceite, voltará num outro dia para esta mesma praça e
venderá sua carne como se fosse uma mercadoria qualquer.
Ela aceitou o convite, levantou-se e saíram aconchegados um
ao outro.
Muitos dias hoje são passados. A praça continua em um lugar
qualquer, de uma cidade qualquer em um país qualquer. Ela está
vazia. O sino toca as doze badaladas. Meia noite. Os bancos já não
servem de apoio para corpos apodrecidos. Um médico consegue
sucesso, com cirurgias fantásticas. Um mendigo alcança a riqueza e
a felicidade, usufruindo dos poucos ensinamentos que tivera. Uma
prostituta já não vende o seu corpo a vários homens, tem um
homem só para ela. O prazer já faz parte da sua noite, e o faz junto há
este homem. O homem que tanto procurou, mas que nunca, antes,
tivera coragem de aceitar. Estava casada.
Claiton Cabral de Vasconcelos