CARNE VIVA
 
 
 
Ana acorda, é meio dia de sábado. Sua cabeça pesa e certa tonteira a incomoda quando tenta desviar o olhar para a cortina branca que reflete o sol de um dia sugestivo à praia. Apesar da vontade de permanecer dormindo, sabe que às duas horas da tarde precisará estar no trabalho, no centro da cidade do Rio de Janeiro, onde trabalha como operadora de caixa numa casa de apostas. O resultado deste terrível mal-estar se relaciona diretamente com a noite anterior, onde com alguns amigos badalaram até altas horas, numa boate no bairro de Copacabana. Nem mesmo consegue discernir a que horas chegou da farra e, muito menos como veio embora, certamente com Paula, a amiga que divide o aluguel do apartamento onde vivem no centro de Niterói.
 
Apesar da resistência em abandonar o leito confortável, aos poucos, ergue-se da cama. Os longos cabelos negros assanhados encobrem partes dos seios despidos e pontiagudos. De calcinha vermelha, equilibra-se indo até o banheiro...
 
No trabalho, as horas correm lentas e cansativas. Ter exagerado na noitada anterior torna este dia inacabável. E, certa dorzinha de cabeça a perturba constantemente. Mas, como disse o poeta: “o tempo não pára” - não parou mesmo. Assim, sentada na barca, retorna para casa, pensando em sua confortável cama.
 
Ao adentrar o lar, se depara com Vera - a proprietária do apartamento -, que atualmente mora no estado de Minas Gerais. Havia ido embora há uns cinco meses. Veio para organizar a situação do imóvel, pois já que decidiu não mais morar em Niterói, pretende alugar o apartamento por um preço bem superior ao atual que é cobrado às duas colegas:
 
- Bom. Eu não vou mais morar aqui. O valor que vocês duas me pagam é muito baixo. Desse modo, preciso do apartamento. Como sei que vocês não têm condições de pagar o que eu exijo. Peço que desocupem o imóvel. Apesar de que a Paula já decidiu morar com um conhecido dela. Assim, só falta você, Ana, encontrar um lugar para viver.
 
A ressaca e o sono que Ana sentia até então, perdem a dimensão atingida há minutos atrás, pois sua preocupação agora, se destina a esse acontecimento repentino e chato neste inicio de noite.
 
- Eu não gosto de ser deixada por alguém. Não admito ser abandonada. – diz ela, enraivada a um amigo, referindo-se ao sumiço do namorado.
 
Ana encontra-se magoada, intrigada com a ausência de seu namorado João. Ele, depois de ganhar uma boa quantia de dinheiro no turfe, sumiu. Não atende ao telefone e não dar qualquer sinal de vida. No entanto, paira na cabeça dela que o sumiço do moço, possa estar relacionado com o fato de o mesmo ter descoberto suas saídas noturnas com “outros” homens. O fato é que ela não o ama inteiramente. O mesmo não chega a ser aquele homem que lhe provoca arrepios ou fantasias avassaladoras, porém gosta de sua companhia, pois ele é (ou era) uma presença constante, alguém com quem poderia contar. Já que os “outros” são apenas transas passageiras. O caso é que o desaparecimento de João ocorre conjuntamente à confusa atribulação em a sua moradia.
 
Esta moça sofre os abismos do cotidiano. São atribulações que cercam os seres constantemente. Tais acontecimentos são doloridos. Faz-se descer no rio como entulho jogado a sorte. Mas ao se cair nessa trama conflitante, ocorre um processo de crescimento, perante a batalha que se trava para superar os percalços. Essa luta chama-se experiência nova. Sentir na pele e aprender com a dura realidade sem ter como fugir. Apesar de passar por todo esse desajuste, não há a certeza de que sairá preparada para o que der e vier, pois a vida inteira é permeada por nocautes que precisam ser driblados. A verdade é que deve encarar a questão para não ser consumida, ou então fugir, caso haja esta possibilidade. Cada um age a seu modo, cada um possui armas e maneiras secretas de se dar com as situações.
 
Fazer essas viagens, cair de vez em quando em mundos desconhecidos, quase sempre amadurece mais, desperta o olhar para outras direções, conversa de forma brusca e sincera; essa conversa/tropeço faz com que se avalie a relação com os atos. Permite visualizar mais atentamente as pessoas que estão ao lado. É um choque, de certo, necessário. É a partir daí que se abrem veredas possíveis, que se olha para o mundo com olhos mais sensatos, abandonando o romantismo e encarando a realidade. Muitas vezes o ser se torna seco, duro, indiferente - mas não (é a realidade crua que se apresenta). A fruta que deixa de ser verde e agora mostra sinais de amadurecimento.
 
Assim, não importa se João voltará. O importante é que ajudou num reposicionamento dum ser. Sua ajuda foi sem palavras. O distanciamento foi uma forma de fortalecê-la, fazendo com que a mesma enfrente seus monstros diários a fim de derrotá-los com suas próprias forças. É preciso recomeçar. Caso a vida não cesse, é necessário seguir destrinchando outros equívocos...
 
Desse modo, a falta de João perdura. Os dias amontoam-se e é necessário encontrar nova moradia, pois a pressão para que deixe o imóvel é acirrada. Ambas até discutem seriamente sobre os acertos financeiros...
 
Submetida aos dilemas do cotidiano, Ana entra no elevador e, se depara com uma senhora idosa: dona Maria. Ambas travam breve diálogo. Ana relata sua necessidade urgente de arrumar moradia...
 
A vida e seus meandros: destino ou acaso. O certo é que se entendem. Ana transporta seus poucos pertences para o apartamento dessa senhora, que vive com o marido e, um filho recém separado: André, um moço de trinta e cinco anos de idade...





Obs: (Recorte da realidade concreta).

Do livro: "Fragmentos temporais" de Valdon Nez
Valdon Nez
Enviado por Valdon Nez em 16/10/2012
Reeditado em 22/10/2012
Código do texto: T3935476
Classificação de conteúdo: seguro
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