A ÚLTIMA GRANDE LIÇÃO
A discussão na sala de aula tornou-se acalorada.
- Você não sabe de nada. Já lhe disse que precisa ter humildade para aprender!
- O senhor é que não sabe ensinar, só sabe o que está nos livros! Não pensa... é bitolado.
- Bitolado?!! E de onde você pensa que vai tirar conhecimentos? Da sua cabeça-mole? Com essas ideias de jirico? Você só tem dois neurônios na sua cabeçorra e um deles ainda é manco, é aleijado!
A turma caiu na gargalhada. Não era a primeira vez que discutiam. O professor sempre acabava impondo suas regras e a sua autoridade sobre os alunos. Uns tinham medo dele mas a maioria o odiavam. Sabiam que não se pode amar alguém a quem se teme.
O menino saiu furioso, chutando tudo e todos pela frente. Chegou em casa no meio da manhã, trancou-se no quarto e, por mais que a mãe o chamasse, ele se recusava a sair. Do lado de fora, a mãe só conseguia escutar os soluços intermináveis do único filho, que também era órfão de pai. Desde então, naquela cidade interiorana, ninguém mais ouviu falar no menino polemizador. A mãe desgostosa mudou-se para uma outra cidade, na esperança de que o filho pudesse continuar os estudos e se tornar alguém na vida. Alguém melhor do que ela, que não tivera a chance de ir para a escola.
Os anos se passaram e a construção de uma grande hidroelétrica na região obrigou aos moradores de várias cidades e vilarejos a se mudarem para áreas escolhidas pelo governo. Era assim que os governantes estavam habituados a fazer o progresso: destruindo para tentar construir o que quisessem. Houve revolta por parte da população dos conhecidos “atingidos pelas barragens”, mas o poder soberano do Estado, agindo em nome do interesse público, prevaleceu, mesmo que isso custasse a remoção de milhares de pessoas de seus habitats, de suas terras, de seus bens e de sua história.
No dia em que a barragem ficou pronta, foi expedido o alerta sobre as comportas que seriam fechadas e assim, uma grande área seria completamente inundada, sepultando a dezenas de metros de profundidade, sob as águas, espécimes nativas de animais, plantas, insetos e todas as construções humanas – casas, ruas, igrejas, cemitérios e escolas.
Um homem, no entanto, recusava-se a deixar a sua propriedade. Amarrou-se a uma tonelada de dinamite e espalhou bombas caseiras de grande potencial explosivo, suficiente para mandar pelos ares a barragem e todos que estivessem num raio de quilômetros. Helicópteros da polícia federal, agentes da divisão de inteligência do governo, bombeiros e outros especialistas em negociação estavam, há vários dias, tentando demover o homem de seu intento. Se ele explodisse a barragem, seria um forte golpe contra o Estado. Se o governo recuasse e não inundasse a área, criaria um precedente e muitas outras obras poderiam ser embargadas no futuro.
- Chamem o professor “Z” imediatamente! – disse o chefe das operações a um agente negociador. - Está aposentado e talvez ele seja o único que conseguirá nos ajudar a resolver esse impasse. Ele conhece tudo e a todos dessa região. Ofereça-lhe o que for. Até o título de “doutor honoris causa” – o mesmo que o presidente Lula recebeu de 5 Universidades Federais.
- Ouvi dizer que o professor é meio esquisitão... não gosta de se envolver com política.
- Não importa. Ofereça-lhe o que for, dinheiro, viagem pelo mundo, carros, fazenda... qualquer coisa que ele pedir, será infinitamente menor do que o custo dessa hidrelétrica que é de 25,8 bilhões de reais...
- Puta que pariu, Coronel!! Tanto dinheiro assim?
- É... para você ver... mas isso não nos interessa. Temos que neutralizar o maluco. Nem mesmo o pessoal da Polícia Federal, da ABIN, do FBI e CIA juntos conseguiram desarmar as bombas que ele instalou na base da barragem, a 40 metros de profundidade. Qualquer pessoa que passar de uma área delimitada, fará com que os sensores de movimento disparem as bombas, fazendo a barragem voar pelos ares. Descobrimos ainda que ele criou um sistema de comunicação por rádio que ativará bombas escondidas num raio de 50 quilômetros.
- Caraca!! Então o cara é um gênio?
- É sim, um autodidata. Já levantei a vida dele inteirinha. Não tem qualquer parente vivo. Ficou órfão de pai e mãe quando criança. Saiu da escola aos 10 anos... nunca mais frequentou uma escola. Andou pelo mundo. Aprendeu várias línguas sozinho. Fez dezenas de cursos pela Internet. Leu centenas de enciclopédias e milhares de livros de química, eletrônica, física e os escambau. Vivia em sua casa, no meio do mato, e só saía para viajar. Ninguém sabia direito o que ele fazia a não ser que era um “gênio maluco”. Deu várias idéias aos prefeitos regionais para aproveitar melhor a luz solar e eólica, para não depender mais das hidroelétricas. Mas você sabe, política é política. Quando os governantes não querem, não tem quem faça nada. Já tínhamos recebido um aviso dele para não construir a hidrelétrica aqui, mas achamos que poderíamos neutralizá-lo oportunamente. Ele se calou e agora apareceu com essa chantagem...
- Mas não há nada que possamos oferecer a ele além do “perdão incondicional” e uma justa indenização pelas terras que ele alegar serem dele?
- O sujeito já cortou as negociações. E tem mais... ativou o relógio detonador e disse que, se em 2 horas não demolirmos a hidrelétrica, ele mesmo a demolirá e transformará essa região em um cemitério. Imagine o que publicarão os jornalistas do mundo inteiro que estão aqui.
- Mas então o sujeito está disposto a morrer? É um terrorista?!!
- Agente 27... poupe-me de seus comentários e vá logo trazer o professor “Z..” Só temos uma hora e 53 minutos.
O professor “Z” era um velhote barbudo e rabugento. Estava no seu novo sítio, oferecido pelo governo, regando os tomateiros, quando o helicóptero da ABIN pousou em frente à casa, levantando uma poeira avermelhada. Dele desceram o Agente 27 e a Agente “Y”, psicóloga e especialista em comunicação de crise, da agência.
Expuseram a situação ao Professor “Z”, mas ele foi categórico:
- Não vou, não vou e não vou. Aquele rapaz é um cabeça dura. Eu disse isso a ele há 25 anos. Tem miolo mole. Não ouve a ninguém. Só ele está com a verdade. Abandonou a escola, disse que não precisava dela para nada. Virou um vagabundo. Virou esse terroristazinho barato. Eu não tenho nada com o problema e não vou me meter. Vocês que fizeram a merda... vocês que resolvam.
- Mas Mestre “Z, sabemos que o senhor e ele têm uma forte ligação. O senhor era o único que conseguia discutir com ele e vencê-lo. Pelo menos faça uma tentativa. Já sabemos da sua história com ele no passado. Quem sabe é o momento do resgate agora? O que me diz?
O velho professor alisou as barbas brancas, tirou o chapéu, respirou fundo e disse finalmente.
- Está bem. Vamos lá. Vamos pegar o touro pelo chifre. Eu já estou velho mesmo.. se morrer, não fará a menor diferença... - disse o professor resmungando.
A multidão de curiosos e jornalistas do mundo inteiro estavam lá esperando o desfecho do evento, receosos do que poderia acontecer. Em uma pequena embarcação ancorada no meio do lago, podia-se ver um jovem moreno de pele bronzeada, com barba e cabelos pretos, óculos de grau, seminu, tendo em sua volta, dentro do barco, centenas de bananas de dinamite, prontas para explodir. Pelas caixas de som instaladas na embarcação, era possível se ouvir de longe “ As Quatro Estações” de Vivaldi. Era um cenário digno de um filme de Fellini, com o toque de Spilberg e Alfred Hitcock, juntos.
Do barco da polícia federal, ancorada há 500 metros do ponto em que o rapaz havia delimitado como máximo de aproximação, o Agente 27 gritou pelo megafone.
- Felipe!! Tem uma pessoa aqui que quer conversar com você. É o professor “Z”. Deixe-o ir até você para conversarem um pouco. Depois disso, faremos o que você decidir.
Ao ouvir isso, o rapaz imediatamente ficou de pé no barco. A reação dos atiradores de elite foi reflexa. Todos apontaram suas armas de mira laser para o peito do rapaz. Mas não disparariam, pois sabiam que, ao fazer isso, tudo poderia ir pelos ares, inclusive eles, os atiradores.
- Professor “Z”?!! O que ele quer? Por que acham que ele irá me persuadir a desistir do meu intento em destruir tudo? Ok... o tempo está mesmo esgotando. Vocês só tem agora 10 minutos para destruírem a barragem e irem para suas casas. Coloquem o velhote em um bote e o empurrem para cá. Se colocarem algum aparelho de escuta nele, os sensores irão detectar e tudo explodirá. Nada de escutas, estão ouvindo?
Os agentes concordaram e retiraram o aparelho de escuta que já haviam colocado no botão da camisa do professor “Z”. Empurraram o pequeno bote e o velhote usou as mãos como remo até chegar ao barco. Faltavam menos de 3 minutos para o tempo final, quando ele subiu na embarcação cheia de explosivos, ajudado pelo rapaz.
Todos ficaram apreensivos pois não conseguiam ouvir o que conversavam. O velhote gesticulava e o rapaz parecia descontrolado. O relógio agora indicava que só faltava um minuto para que tudo virasse cinzas naquele vale. As tropas do exército já tinham se afastado para um local seguro, bem como retirado a imprensa e curiosos. Apenas dois helicópteros sobrevoavam, em altitude segura, o local do evento. Os corações de todos estavam acelerados.
Ninguém sabia o que os dois conversavam. Milhões de pessoas no mundo inteiro rezavam, com os olhos grudados nas televisões. Cinco bilhões de pessoas no mundo inteiro, no planeta conectado, assistiria a uma das mais catastróficas destruições de uma obra de engenharia humana. Não destruiria muitas vidas humanas, como nas Torres Gêmeas de 11 de Setembro, mas seria um duro golpe nos governos e suas decisões megalomaníacas.
O ar ficou parado, quando o relógio do diretor das operações indicou que, em segundos, tudo estaria terminado. Crianças e adultos que estavam acompanhando e tinham sincronizado seus relógios também, taparam os ouvidos para se proteger da explosão iminente:... 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0...
O bote com o professor afastou-se do barco e foi recolhido por um helicóptero. Ninguém ousava falar.
A polícia federal e os agentes da ABIN, cercaram o barco e recolheram o rapaz com as toneladas de dinamite. Também tiveram acesso ao notebook, contendo instruções para desarmar todas as bombas. Um único erro e tudo ficaria em pedaços, barragem, pessoas e tudo mais onde estavam escondidos os explosivos. O rapaz arquitetara tudo durante 5 anos, o tempo de construção da barragem. Ele tinha trabalhado na própria construção como peão, disfarçado, para conseguir instalar todos os artefatos de destruição. Foi um plano laboriosamente estudado e executado por um único homem.
O que todos queriam saber era: o que o professor “Z” dissera ao rapaz para convencê-lo a mudar de idéia? Que poderosos argumentos usou para dissuadir o jovem rebelde a se entregar e deixar as coisas como estavam? Lógica Aristotélica? Jornalistas do mundo inteiro perguntaram ao Professor “Z” como foi o diálogo e ele se limitou a dizer:
- Foi muito difícil... muito difícil. Felipe estava zangado, magoado, transtornado. Disse que toda a culpa do que estava acontecendo era minha. Que teria sido no dia em que eu o humilhei perante a classe, fazendo zombarias, que ele decidiu abandonar a escola e nunca mais ter um professor. Ele passou a odiar professores. Quis aprender tudo sozinho. Tomou o caminho da busca do conhecimento por si mesmo e mergulhou em todos os estudos possíveis. Então, disse-me também que eu e tantos outros professores incompetentes somos responsáveis por formar monstros como ele. Que eu não tive piedade, respeito, amor, nem consideração a ele – que só queria aprender, nada mais do que aprender. Disse também que professores ruins como eu, deveriam nunca entrar em uma sala de aula, pois em vez de ensinar a amar, eles ensinam a odiar.... a se afastar da busca pelo real saber. Ele cuspiu em meu rosto e disse que eu iria morrer ali mesmo com todos os que, de certo modo, tinham tido bons e maus professores. Mas ele sabia que os bons eram a minoria. Diante de tudo o que ouvi, compreendi que o rapaz talvez tivesse razão. Eu não tinha sido um bom professor. Também sofri muito para aprender. Na minha época, ficava até de joelhos sobre milho ou num canto da sala, recebia palmadas e beliscões dos meus professores. Foi assim que eu aprendera a aprender e depois a ensinar. As leis mudaram, mas meu interior continuava seco, frio, sem amor.
Os jornalistas anotavam tudo e gravavam cada palavra com ansiedade. Todos queriam fazer perguntas ao mesmo tempo. Foi quando uma voz se sobressaiu da multidão e perguntou:
- O que finalmente o senhor disse a ele, que o fez mudar de ideia, professor?
O professor piscou algumas vezes, seus olhos encheram-se de lágrimas e ele respondeu.
- Perdão... perdão... – eu apenas lhe pedi perdão.
(*) Psicólogo, escritor e professor.
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O fraco jamais perdoa: o perdão é uma das características do forte.
Mahatma Gandhi