A vida como ela é

O dia mal raiou e ele estava acordado. Cabelo alvoroçado, remelas nos olhos, bafo de cana da noite anterior. Hoje é Sexta. Sete horas da matina já está lá. Veste a farda, calça a bota, coloca o capacete. Pronto, encontra-se à caráter, protegido. Sobe no andaime, passa pra balança. Chega a argamassa, a cerâmica. Faz o reboco. Faz o emboço. Está trabalhando na fachada de mais uma especulação imobiliária, de mais um gigante da engenharia. Mal sabe o que significa especulação. Mas está lá.

Agora com sol à pique senta a cerâmica. Dá um sorriso, sorriso falho. Um dente aqui, outro acolá. Não se importa. Está feliz. Vê seu serviço ficando bonito. Constrói moradas espetaculares, com varandas imensas, fachadas deslumbrantes, enquanto seu barraco está todo rachado. Mas continua lá. Feliz da vida. Seu primo Manéo não está trabalhando, se envolveu numa briga de bar e agora vê o sol nascendo quadrado. Ele não. Trabalha numa firma, seu patrão é um doutor. No fim de semana tem dinheiro pra pinga e pra puta. Joga um futebol no fim da tarde de Domingo, diz que é pra baixar a barriga. Bebe mais umas, chega em casa. A mulher pergunta onde estava. Diz que se perguntar de novo, apanha. Mulher com ele é na porrada.

Permanece fedido do racha, da cana, da rua. Pega a mulher, leva pra rede. Cama não tem. Ali mesmo fecundam, sem camisinha, sem “píula”. Daqui há poucos meses chegará mais um na família, originado deste dia de Domingo. O garoto vai estudar, quer que o filho seja doutor. Se não for, que seja como ele, operário. A mãe diz que se for com o pai, está bom. Termina o dia dormindo. Fedido, bêbado e saciado. Amanhã é Segunda e tem que acordar cedo. Aí começa tudo outra vez.

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Publicado originalmente no Diário de um’A Barata em 17/01/2001.