O Sonho Lacaniano De Camila
Camila Morena, filha de uma família tradicional da sociedade orwelliana, vivia uma vida de conto de fadas. Muito amarrada na família, frequentava um psiquiatra não por ter problemas graves de neuroses.
"Apenas normoses, ou neuroses normais" — como costumava dizer para pessoas de seu ciclo de amizades. De temperamento expansivo, gostava de festas onde rolava de tudo. Mas não consumia nada que fosse mais do que duas taças de cerveja. Quando muito exagerava, ficava meio alta e parava, decisivamente, na terceira.
Saiu apressada de uma butique nos Jardins e, como estava próxima ao apartamento da Edna Manhattan Nestor, onde sua amiga poderia estar em visita, resolveu ir até lá. Desde que os telefones celular e fixo não atendiam às chamadas.
Ao adentrar o apartamento encontrou também Marta Lambs Rebuças, a mãe de sua melhor amiga: “Tudo em sua família parece certinho demais. Pelo menos de seu ponto de vista”. Camila Refutou afirmativa:
— Vivo num ambiente familiar harmonioso, onde descascar uma cebola na cozinha parece uma delícia sem fim. Vou ter de sair agora, senão perco a hora de cinquenta minutos, mais ou menos, dependendo da disposição do analista. Após sair da casa da amiga, surpreendeu-se chegando na hora para o início da sessão.
Começou a querer contar um sonho o qual não sabia definir seu significado. Argumentou ao analista: — Talvez você possa me dizer, senão vou ficar perturbada um tempo tentando saber se é uma fantasia, uma utopia ou um desejo reprimido. Sei lá o quê. Talvez um complexo de Eva. Ou uma manifestação aleatória do Outro.
O psiquiatra ouvia, em silêncio, as considerações de Camila:
— Fico sem jeito de falar isso, mas resolvi contar o sonho e não há como de dizer de outra maneira. Não sei, talvez não tenha aptidão para dizer diferente. Ela olhou interrogativa para o médico enquanto cismava ruminando de si para consigo: “Será preciso contar mesmo esse sonho? E se o significado for alguma coisa que me comprometa? O Outro tomando conta de mim”?
Continuou fixando o psicanalista, relutando interiormente se devia ou não contar a experiência onírica. Bem que tentou ouvir a opinião de Edna. Contar para a mãe dela, nunca. Não confiava nem um minuto numa pessoa da geração de sua mãe. Fosse quem fosse. Apesar de conviver com ela sem sobressaltos. E tentar confiar no psicanalista.
As imagens oníricas tinham grande força emocional e intensidade estética. Quando adolescente costumava ouvir histórias de sonhos esquisitos entre as garotas e as pessoas entrevistadas com quem convivera profissionalmente enquanto assistente de palco no programa de uma apresentadora de TV. Mais que fortes, as imagens oníricas desse sonho esquisito eram de uma beleza manifesta.
Mais que um sonho, achava que talvez fosse mesmo uma premonição. Talvez. Daí seu medo. Ainda na dúvida se contava ou não, pensou que não devia se expor escancaradamente daquele jeito. E se o psicanalista aproveitasse seu sonho para se inserir de modo velado em seu psiquismo? Bom, ela tinha desfilado em passarelas da moda, circulado no mundo de atores e atrizes do teatro, cinema e novelas. Mas... nunca ninguém tinha lhe contado um sonho nem parecido.
Os olhos expressivos, cor de mel, seu olhar adolescente e brejeiro de quem está sempre aprontando uma resposta antecipada para qualquer atitude crítica (o psicanalista certa vez havia dito que ela parecia estar sempre se desculpando, numa atitude autodefensiva) venha de quem vier. Todas essas considerações vieram à tona num átimo de segundo.
Pensou que, se não tivesse de contar esse sonho, se não pudesse confiar nele, analista, suas intimidades, seus sobressaltos, suas neuras, em quem mais poderia confiar? Estaria simplesmente jogando fora a grana das sessões. Disse de repente:
— Eu sonhei que saía passarinho de meu xibiu. Não, não um passarinho. Vários, sei lá, dezenas, centenas. Mas não doía nada. Eu ficava acocorada no sofá da sala e olhava a calcinha preta rasgada pelo bicar dos passarinhos que saíam do canal vaginal... Estava tão superlativamente espantada e ao mesmo tempo encantada na contemplação desse fenômeno, que pareci satisfeita com a visão dos bichinhos saindo, alados, da vagina.
— "Seria talvez uma fixação de menina? Ou estaria carente de parir? Ou de transar"?
— De lá, do vinco (ela apontou o dedo indicador para a vagina) enquanto encarava a reação do analista, que não teve nenhuma. E continuou:
— Um após o outro, eles esvoaçavam pela sala. Ganhavam espaço pelo terraço e se dirigiam a algum lugar pré-determinado que eu não tinha ideia de onde seria. Para onde estavam se dirigindo ao celebrar os movimentos em desassossego das asinhas?
— Súbito o sofá estava num cemitério. Ela olhava o orifício na calcinha rasgada pelas bicadas dos passarinhos que continuavam a promover a inquietação das asinhas e a suposição que há liberdade ou mostra de felicidade em cantar.
— Rápida e provisoriamente os passarinhos trinavam de maneira deliciosa. Seus gorjeios eram trinados melodiosos ouvidos como se estivessem não ao redor, mas num lugar distante. Apurei o ouvido para saber por que razão a sonoridade não chegava mais próxima e intensa. Mais condizente com a pouca distancia em que alguns estavam.
Camila pensou em questionar a narrativa e perguntar alguma coisa ao médico que a fizesse sentir-se menos apreensiva. Preferiu continuar a narrativa ao dizer que saltou em direção ao solo cimentado do cemitério e surpreendeu-se caminhando em direção a janela do apartamento.
— Ouvi e, estupefata, vi milhares de passarinhos saídos de outros apartamentos em outros lugares da cidade vizinhos. Os espaços estavam tomados pelos movimentos e a música das aves. Pareceu-me estar participando de um evento em que milhares, talvez milhões de outras mulheres também estivessem passando pela mesma situação de parturientes de passarinhos.
— Por que voavam em direção às necrópoles? Por que se dirigiam aos cemitérios com sua presença e seu canto? Por quê? Por que não podiam sair vivos dos cemitérios? Sentir-se-iam atraídos pelos cadáveres? Pelas cruzes? Pelo mármore?
Após breve pausa aflitiva, voltou a falar perguntando-se mais à sua psique que ao especialista. — Que força sobrenatural os estava privando da liberdade? Eles simplesmente caíam sem vida nas calçadas e sobre os automóveis que trafegavam nas ruas ao lado dos muros que cercavam as casas dos mortos. Havia algo dos Pássaros de Hitchcock neles.
— “Podiam adentrar esse solo dito sagrado, pensou em voz alta. Por que não podiam sair vivos do cemitério? Que maldade essa imagem representa? Morriam ao tentar sair da casa dos mortos. Que estranho”!
— A vida deles parecia depender da proximidade das covas. Era impressionante o contraste entre a alegria contagiante com que saltavam e gorjeavam seus trinados, suas vozinhas de pássaros encantados por movimentos e cantos primaveris.
— As pessoas iam para as necrópoles mais para ver esse espetáculo canoro e esses sons melodiosos de criaturinhas frágeis e coloridas, do que para rezar os se despedir de seus mortos. Esvoaçavam sobre túmulos, mausoléus e criptas como se cantassem os corpos em decomposição. Firmavam os pezinhos sobre as cruzes e as asas das figuras angelicais em frenéticas cantorias.
— Essas composições aladas tinham um quê que ultrapassava as leis naturais. Seria isso de bom augúrio? Por vezes pareciam formar bandas de três, quatro, por vezes cinco passarinhos cantores que harmonizavam entre si os trinados.
— A coisa mórbida do sonho estava em que, quando saíam dos limites do muro dos cemitérios, caíam no chão e ficavam agonizando. As asinhas logo paravam de se debater. Morriam. Dó de vê-los. Além da fronteira da casa dos mortos não havia possibilidade de sobrevivência para eles.
Como que consolando-se Camila pensou: "Sonhar com passarinhos, segundo os dicionários de interpretação de sonhos, prenuncia alegria, harmonia, entusiasmo e amor".
— Assim como possibilidade de viagens. Lembrou o analista. Que afinal falava alguma coisa. Como se tivesse acompanhado seus pensamentos.
— “Esperava mais envolvimento dele na interpretação desse sonho.” Camila queria livrar-se logo do peso dessa fantasia onírica que, ainda não tinha como saber, poderia ser a premonição de pesadelos. Esperava contar com a providencial assistência do médico. Que certamente não ia vir. Pelo menos agora:
— Vamos falar mais desse sonho na próxima sessão. — Disse ele.
— Está bem, ela replicou. E pensou: “eu bem que queria trocar uma ideia com minha amiga Edna antes de vir aqui". Simultaneamente ouviu a canção do celular. Era Edna:
— Desculpe, olhou com olhar compassivo nos olhos do analista. — Esqueci-me de desligá-lo. Um instante, por favor. Passou a atender o celular.
— Sonhei que estava vendo o Jornal Nacional — Edna afirmou. Achei que deveria falar contigo desse sonho. Não sei porque eu tinha de te telefonar agora dizendo isso. Ouvi essa notícia esquisita: mais de sete bilhões de corpos de passarinhos haviam sido varridos nos últimos nove meses pelos garis das cidades nos cinco continentes. — Imediatamente Camila prometeu a amiga falar com ela "daqui a pouco".
Desligou o telefone e passou apressada a informação ao médico.
— Isto é sincronicidade — disse o analista, enquanto a secretária bateu apressadamente na porta e a abriu, anunciando que o próximo cliente estava na sala de espera.
Camila entendeu a mensagem e dirigiu-se à porta de saída. — Ah! Sim! Disse o psicanalista falando enfático: "por que você não ler o Salmo 91"?
Logo que Camila saiu o doutor pegou o microfone e gravou: “A paciente Camila, sentindo-se sem função social utilitária e angustiada diante de uma participação mecanicista nos laços familiares e sociais, deseja compensar o vazio existencial resultante, justificando-se, com relação à culpa em decorrência da vida vazia de significado e da ausência da maternidade, compensando esses impasses com fantasias de maternidade múltipla, beirando a criação de um complexo de Eva a povoar a sociedade com rebentos frágeis, sem liberdade possível, num mundo globalizado pela futilidade consumista e controlado pela onipresença de um engajamento ético impossível de se realizar”.
O psicanalista parou um minuto para dizer à secretária que, em cinco minutos, poderia fazer adentrar na sala de análise a próxima paciente. Pegou novamente o microfone e gravou: “A suposta liberdade dos filhos (os passarinhos) se afirmava muito rapidamente e logo acabava em morte, assim que, sem tardança, saíam da proximidade de seus ancestrais: os mortos. Os mortos que ela mesma representava".
— O sonho expressa, entre outras coisas, a impotência da frágil consciência de uma geração que, ao tentar ultrapassar as fronteiras que a separam de uma vida da qual não são capazes de se afastar, conforma-se à dependência atávica, ao medo estabelecido pela incorporação através da história, de pensamentos e valores interiorizados desde a vida vegetativa no líquido amniótico.
O analista coçou com a unha do dedo mindinho da mão esquerda o cavanhaque enquanto dizia pensativo: — "A morte dos pássaros, logo depois de ultrapassarem a fronteira do mundo de seus antepassados (o cemitério), representa a idealização voyerista-masoquista de personalidades infantis que, na impossibilidade de criarem sua própria depressão, sua própria alternativa de vida, passam a simular uma vida que não é deles, mas a de seus mortos”.
— “A morte dos pássaros logo após atravessarem a barreira do muro do cemitério representa a incapacidade de uma geração abrir caminho para suas próprias realizações intelectuais e emocionais e passam então a viver das emoções e realizações de seus ancestrais. De seus mortos. A morte dos pássaros simboliza a morte das expectativas de vida de uma geração, que mal sai do útero materno e começa a viver uma vida que é uma extensão da personalidade de seus mortos. Uma vida que afirma o suicídio de suas ambições inexistentes”.
A secretária anuncia a entrada na sala do próximo paciente. O analista responde, lacônico, ao cumprimento, e abandona o microfone, não sem antes gravar:
— “Como diria Walter Benjamim, diante do inimigo e da expectativa deste vencer ao impedir o impulso que realiza o princípio de vida e de realidade, resta apenas, ao médico, realizar a tanatoscopia. Desde que a consciência da impotência pessoal (de si mesmo) e coletiva do Outro se satisfaz e realiza apenas pelo assassinato em massa hegeliano”.
E concluiu a avaliação provisória do sonho de Camila, move os lábios, e menciona, de si para consigo, que voltará à gravação visando complementar suas considerações preliminares.
Nesse momento Camila sente pressões na região da vagina. Conduz uma das mãos à saia que levanta para ver o que está a acontecer. A calcinha está sendo bicada de maneira persistente. Há sangue sobre o banco e em suas coxas respingadas de vermelho. Ela berra de medo e
de dor. Quer acelerar o carro, talvez em direção ao pronto atendimento de um hospital. Mas o trânsito está um caos. Com pássaros se lançando sobre a estreita abertura de alguns vidros não totalmente fechados.
A agressividade das aves é inesperada: intimida e atemoriza. Os pássaros que conseguem sair do canal vaginal dentro dos carros, começam a atacar indiscriminadamente as pessoas dentro deles.
Os pássaros que conseguem penetrar de fora dos carros pelas frinchas dos vidros entreabertos, somam-se à agressão das aves que já estavam
no interior deles.
Abalroando-se entre si, os carros colidem e congestionam ainda mais o trânsito. Enquanto uma nuvem de pássaros assalta velozmente os vidros da parte exterior dos automóveis, ao fazer tentativas de atingir agressivamente seus ocupantes. Pânicos. Apavorados!
No consultório do Psiquiatra a cliente que substitui Camila no divã, senta-se e começa a olhar desconfiada o médico. Após alguns momentos de hesitação, ela finalmente fala:
— Doutor, eu tive um sonho. Muito estranho. Mesmo!b