Mágoas

Esperando por um milagre... Sempre começava assim seu dia: esperando por um milagre. Algo que a tirasse do marasmo, que lhe trouxesse a libertação, que lhe devolvesse a alegria.

Abriu os olhos sonolentos. Pensou em tudo o que deveria fazer durante o dia. Naturalmente, caiu em desânimo, sem querer sair da cama quentinha, mas que já começava a incomodá-la. Olhou para o lado. Ela dormia profundamente, alheia à vida, alheia à morte... distante de tudo... sua mãe. Ergueu-se, espreguiçou-se:

"Vamos lá" - disse para si mesma. É preciso reagir.

Vagarosa e silenciosamente dirigiu-se ao banheiro. Sem ânimo escovou os dentes, lavou seu rosto sonolento, penteou-se, viu suas olheiras, suas rugas profundas deixadas pelo tempo.

Nunca se imaginara assim: velha, feia e resignada.

"É a vida...", murmurou tristemente.

Vestiu um casaco sobre o velho pijama desbotado. Estava frio.

Desceu as escadas. Preparou seu café. Tomou-o sozinha como fazia diariamente. Pegou um jornal de alguns dias atrás como companhia. Leu algumas notícias antigas. Por quê? Hábito? Não sabia. A solidão tocou fundo seu coração. Há quanto tempo vivia assim? Todos os dias da mesma maneira...Quando as coisas iriam mudar? Quando conseguiria ter algum prazer na vida?

Dirigiu-se ao quarto. Ela continuava a dormir. Vestiu-se. Pintou discretamente os lábios, pegou suas coisas e saiu.

O carro demorou a pegar. Estava frio... Olhou o relógio: estava atrasada! O trânsito era seu maior inimigo. Vivia atrasada ou adiantada, ao sabor das longas filas de carros, procurando cada qual seu rumo. Tomou a direção de seu trabalho. Lá estavam... Filas intermináveis de automóveis parados. Todos na mesma situação em que ela se encontrava.

Sozinha, sem algo que pudesse entretê-la, entregou-se a seus pensamentos. Não queria pensar, mas não podia evitar. As imagens vinham, sobrepunham-se à realidade, mesclavam-se com seus anseios, com suas dores, com seus devaneios. Sempre que isso acontecia, e era frequente, sofria muito, desesperava-se em sua solidão e amargura.

Como tudo aquilo começara? Qual fora a origem de toda essa mágoa que a vida lhe causava? Pai dominador? Por que se deixara dominar? Mãe protetora? Por que se deixara proteger? A culpa era só sua. Ela sabia disso. Sempre aquela mistura de dever e submissão. Uma vida toda ignorando seus anseios, privando-se de prazeres, privando-se do convívio de pessoas que lhe poderiam trazer alegria.

"Será que tenho remédio?" - pensava. "Que tolice! Uma velha como você querendo se divertir? Quanta bobagem..."

Mas a tristeza a invadia, como sempre invadira seus momentos. deveria procurar ajuda. Não acreditava, mesmo, que alguém pudesse auxiliá-la a superar essa tristeza, essa punição que se aplicava voluntariamente, todos os dias. Quanta insensatez já tinha ouvido...Quando a viam triste, exaltavam o sofrimento, tentando fazê-la resignar-se e sentir-se bem assim. Estava cansada dessas pessoas que queriam se ver livres de problemas alheios e falavam qualquer coisa para que se sentissem bem consigo mesmas. Precisava de alguém que se interessa-se por ela de verdade. Quem seria essa pessoa? Onde poderia encontrá-la?

De repente, um zumbido trouxe-a de volta à realidade. Era uma mosca que havia entrado em seu carro. Tentou, desesperadamente, ver-se livre de tão incomodo inseto, abanando braços e mãos, dirigindo-o para a janela aberta do automóvel. O inseto era mais esperto do que ela poderia supor e, sem dificuldade alguma, reinava absoluto dentro daquele espaço limitado. Estava a ponto de chorar de desespero, quando, por vontade própria, a mosca saiu voando pela janela, livremente, como que zombando de sua vida ...

Esse pequeno incidente deixou-a ainda mais angustiada... Por que tudo acontecia com ela? Por que um inseto imundo como aquele escolhera seu carro para entrar? Começou a chorar. As lágrimas escorriam por seu rosto em abundância... Não via mais os outros carros à sua frente. O mundo lhe parecia inundado por suas próprias lágrimas. A paisagem estava toda borrada, sua visão estava difícil em meio a tantas dores. Seus reflexos tornavam-se lentos... desanimados, desarticulados... Quando deu por si, já não havia tempo suficiente para frear. Seu carro projetou-se a uma velocidade considerável à carroceria do caminhão que ia à sua frente.

Sem querer, tinha posto fim às suas mágoas.