Maria

Maria era uma mulher grande. Os seios fartos. As pernas roliças. Os quadris largos. A face arredondada. Os braços flácidos. Sob o uniforme extra grande sinuavam-se as dobras da barriga e das costas. Maria era tímida e tinha um sorriso mais tímido ainda, pouco aparecia, era como uma lua crescente no céu escuro de sua pele.

Todos os dias Maria acordava às 5:30 da manhã e tomava um banho rápido e gelado. Vestia o uniforme marrom e partia. Ela ia a um encontro. Um encontro com a vassoura, a indiferença, o rodo, o sabão e a humilhação. Ela estava preparada para atender a todos e seus semelhantes.

As mãos eram firmes e grossas, varria como se escrevesse sua própria história. Todos os dias. Todos os dias passos eram apagados, rastros desapareciam, qualquer pista de uma suposta existência era esquecida pelas mãos de Maria, ela era como Deus. Maria criava e recriava aquele mudo todos os dias.

Maria recriara a si mesma. E o seu novo mundo crescera extasiadamente. Era deusa de si mesma.

Fora casada com Antônio. Homem de temperamento hostil e violento. Retirara Maria ainda menina de sua casa. Comovera-lhe com promessas toscas. Ou talvez Maria é que fosse tola o suficiente para lhe acreditar. Fato é que nunca suas promessas foram cumpridas. Desde que Maria fora viver com Antônio nunca houve uma palavra, nem mesmo um gesto de carinho por ela. Antônio era como um animal que precisava suprir sua necessidade sexual, Maria era apenas sua fêmea que tinha de se encolher diante da função que lhe fora atribuída. Agarrava suas carnes com rispidez, o odor de álcool misturava-se ao da tristeza, mas era assim que ele sentia prazer. Não importava como Maria se sentia. Quando acabava o desejo ele ia embora e ela podia então voltar a respirar. Ela nunca sabia para onde ele ia, tanto melhor, gostava quando estava só, poderia então respirar.

Mas Maria precisava expandir. Aquele mundo era pequeno demais para ela. No fim do dia, ela largava suas companheiras de trabalho e tomava o ônibus para casa. Maria tinha uma respiração ofegante, um olhar curioso. Parecia procurar alguém, mas alguém que não queria encontrar. Olhava no relógio, estava ficando tarde, era sempre assim. Tentava recuperar a calma, mas só conseguia quando finalmente entrava em sua casa.

A chave girava e lá estava ela, segura novamente. Não havia tempo para sentar, o tempo estava correndo. Desabotoou o uniforme com calma e entrou no banheiro. E os tantos passos que limpara durante o dia pareciam se diluir em cada gota de água que a cobria. Cada gota. Gota a gota deslisando nas curvas do seu corpo. Sentia-se viva.

Um dia Antônio chegou em casa totalmente fora de si. Trazia um amigo, tão ébrio quanto. Era tarde. Invadiram a casa violentamente. Gritavam, pareciam loucos. Ela se escondeu inutilmente no quarto. Antônio gritava, chamava por ela. Quando a encontrou, puxou-lhe pelos cabelos e a ofereceu ao amigo, ela era um objeto de troca.

De frente a espelho olhava seu rosto. Era grande, os olhos, o nariz, os lábios carnudos. Analisava cada detalhe. Entre pinceis e lápis, cores e texturas, ela era uma tela. O bronze, o negro, o púrpura, o vermelho. Maria se transformava. Cada toque e retoque era um carinho de um homem que a amaria. Um por noite. Os cabelos que ela recolhia num imenso coque cheiravam a flores, e com elas Maria os enfeitava. Estava pronta.

Ela fugiu de casa. Fugiu de Antônio. Nunca o amou e precisava amar a si própria. Não precisou pensar muito. Apenas pegou uma sacola com seus poucos pertences, um pouco de dinheiro e foi embora. Não tinha destino. Perdera a si mesma. Buscava um caminho que a guiasse de volta para si.

As plumas, ela adorava as plumas. Uma grande e onipotente ave, ela se sentia. O brilhante vestido azul. A cava do decote. As sandálias de camurça, altas, delicadas e fortes. Já estava na hora. Já estava pronta.

Nunca mais soube de Antônio, os anos apagaram Antônio de sua vida como ela apagava os passos no chão. Nunca mais soube de muita gente, e se contentava com isso. Maria sabia de si mesma, era isso o que importava agora.

Ouvia os gritos mimosos das pequenas flores de um jardim noturno. Ouviu a voz calorosa de Papai Jones. Já anunciava sua entrada. Ela, a mesma e ao mesmo tempo a outra Maria, agora brilhava como um astro de luz própria. Agora seus olhos tinham um brilho misterioso, talvez fosse felicidade, uma felicidade quase incompreensível, quase inacreditável. Mas era. Entre as plumas e brilhos, entre sua invunerabilidade e a ansiedade do seu público, entre a sua satisfação e o desejo de alguém que a esperava, ela imperava, ascendia, expandia, a Púrpura Flor da Noite.

Samantha de Sousa
Enviado por Samantha de Sousa em 11/10/2012
Código do texto: T3927277
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