As Horas

Acordou sem vontade de acordar. Não abriu os olhos. Era um daqueles dias em que a cama nos prende e não relutamos em levantar. Há quanto tempo não ficava assim, tão abandonada de si? Os cabelos cobriam o rosto e se emaranhavam pelo pescoço. O corpo estava pesado, mal podia se mover. Era deliciosa aquela sensação de saber-se estar dormindo, de fazer um mundo só seu em seus sonhos. Sonhar sem pudor. Mas o tempo gritava, o som do despertador violentava o silêncio do quarto e ela era puxada para a realidade como uma criança que vem à luz, poderia até chorar como uma nessa experiência extra-uterina. Abrir os olhos, mover o corpo, era difícil ter que aprender tudo de novo.

Paulo, adormecido como uma pedra, ainda estava mergulhado em outra vida. Sempre se perguntava por onde Paulo velejava quando adormecia. Estava tão sereno. A respiração era leve como a de um menino. De vez em quando movia os lábios, como que fosse dizer algo. Ficava atenta, gostava de vê-lo dormindo. Seria tão covarde ter de tirá-lo de toda aquela harmonia. Sibila acordava cedo com a missão de acordá-lo a tempo, mas omo queria falhar...! Desejava tê-lo sempre encantado, como naquele instante, sentia que podia protegê-lo que o podia amar infinitamente. Nunca falhara.

O cheiro do café se espalhava e se misturava ao cheiro do banho do esposo. Ele o bebia rapidamente sem sentir-lhe o gosto. Poucas palavras eram trocadas naqueles momentos, e o silêncio que os preenchia aguçava os outros sentidos de Sibila. A água com que lavava os pratos era morna e ao mesmo tempo refrescante, Paulo saíra deixando a mesa em desordem e a porta entreaberta.

Tudo acontecia tão rápido, olhava para o relógio e podia duvidar daquele seu movimento lento que separa um minuto do outro. Parecia querer mentir para ela o tempo todo, sempre fingia que teria tempo suficiente para tudo, mas o dia sempre terminava para ela com a impressão de que nada fora feito. Sibila e o relógio não se compreendiam. Algumas coisas eram simplesmente incompatíveis. Mas não havia tempo para pensar nisso, precisava ir ao mercado e reabastecer a dispensa. Listava mentalmente tudo o que era necessário, olhava de porta em porta, de gaveta em gaveta, queria ter certeza de que não esqueceria de nada.

Nesse movimento quase mecânico de abrir e fechar, depara-se com a gaveta de correspondências, há tempos não a abria, há tempos não recebiam mais cartas, a modernidade a modernidade apagara-lhes o brilho. Quis recordar um pouco do que lhes traziam aqueles papeis que cheiravam a saudade. Olhava com ternura as cartas que Paulo escrevera-lhe quando jovens, guardou-as para não esquecer de como eram, envergonhou-se por ter esquecido, por tê-las esquecido por tanto tempo trancadas naquela gaveta. Consultou o relógio, era preciso agir. Separou-as e para lê-las mais tarde, o tempo passava, não podia perder a hora.

Recolheu as cartas e levou-as consigo para o quarto, deixando uma delas cair no corredor. Olhou espantada, era uma antiga fotografia, reconhecia Paulo, não mudara quase nada. Era tão bonito, um rapagão. Lembrava de como era cobiçado pela outras moças, era um garoto encantador. Mas quem era aquela jovem segurando sua mão? Teria Paulo ousado guardar uma fotografia de ex-namorada assim junto à intimidade deles? Era impossível! Mas, como nunca encontrara aquela fotografia antes?

Observava atentamente a menina, como era pequena e frágil... tinha um olhar meigo mas perdido, também era bela, como estaria agora, depois de tanto tempo? Teria se conservado sua beleza? Era estranho ver Paulo assim com outra, ainda que numa fotografia tão antiga. De quando seria? Olhou no verso, o que viu foram seus nomes escritos por sua letra. Assustou-se e começou a rir, parecia invadida de alegria e espanto. Como não se reconhecer a si mesma?

Correu para o espelho e olhou atentamente o próprio rosto, comparando-o com a fotografia: os olhos pequenos pareciam cansados, a boca parecia mais fina e menos viçosa, as sobrancelhas mais arqueadas, a pele encrespava-se, não podia ser a mesma menina, aquela que estava ali ao lado de Paulo. Parecia ter se perdido, parecia ter se tornado aquilo naquele exato momento pois não lembrava de ser assim. Rugas surgiam em todo o rosto, traços que não lembrava ter adquirido. Quando? Olhou para o relógio. Quando foi que o tempo levou o seu rosto embora e dera-lhe aquele que via? Seu olhar escureceu e aquele ledo espanto se tornou desespero.

Começou a despir-se, precisava se ver por inteira. Toda ela parecia deixar de ser sólida, derretia como um sonho surrealista. Não podia ser real. As mãos visitavam cada parte de seu corpo para comprovar o que os olhos viam: um ventre de quem engravidara, os seios de quem amamentara, a pele de quem vai perdendo anos (ou seria ganhando?). Não sabia o que pensar de si mesma se isso fosse real. Talvez se achasse bela. Quando foi a última vez que se achou bela? Quando jovem, tinha vergonha de se ver nua, gora tentava descobrir-se em cada centímetro de pele exposta, em cada mancha, em cada pelo. Quem era aquela que via? Teria sido feliz? Porque só agora ela era aquela que ela via? A fotografia caía ao chão e voltava ao seu silêncio. Sibila tinha medo de ser devorada pelo tempo, mas nem se deu conta de que as horas passavam e precisava ir ao mercado. Seu corpo nu era-lhe todo o seu agora.

Samantha de Sousa
Enviado por Samantha de Sousa em 11/10/2012
Código do texto: T3926563
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