F.
F. abriu os olhos com lentidão. Anotou mentalmente o valor inescrupuloso de mais um dia que se iniciava contra sua vontade. Contou até três e levantou-se da cama num único impulso.
Vestiu-se rapidamente e deu um vago olhar à sua imagem refletida no espelho do banheiro, enquanto penteava os cabelos. Tinha muitas espinhas no rosto, usava aparelho nos dentes e usava óculos com lentes grossas e ultrapassadas. Não pode evitar um sorriso enquanto pensava, amargamente – a culpa é toda sua.
O fracasso era entranhado em suas veias, por isso acordara sem esperança – ou melhor, não existia esperança alguma em sua vida – daí o motivo de nenhum nervosismo ou excitação. F. tinha tudo estritamente planejado para tudo, mas lá no fundo, não acreditava em si mesmo – e esta era a chave, sem ele saber, do sucesso.
Abriu a mochila e retirou de lá os livros que já não seriam mais necessários. Colocou a garrafa de gasolina na mochila e os fósforos dentro do bolso.
Separou o dinheiro da passagem e seguiu em frente.
Pegou o ônibus perto de casa e desceu à duas quadras da escola. Conforme andava, sentia-se estranhamente calmo e, mesmo sem querer admitir, confiante. Sorriu.
Porém, tudo mudou quando encarou o prédio da escola. Até o ar pareceu ficar mais denso.
Um enorme arrepio percorreu sua espinha e F. ficou ofegante e trêmulo. “Vi e vivi a repugnância humana em seu grau mais extremo”, pensou.
Cada passo que dava em direção à escola era uma vitória. Tinha a impressão de que não chegaria nunca.
Ao adentrar os portões, cada corredor cheio de gente que avistava cada professor bebericando seu café que via… Mais tinha certeza de sua escolha.
O sinal para a primeira aula tocou. F. acordava de incessantes pesadelos com aquele barulho.
Sentou em seu lugar, enquanto as pessoas se acomodavam. F. não tirava os olhos da porta. Parecia contar os minutos até que…
J. entrou na sala. Tinha um ar de riso e parecia gargalhar por dentro. Quando viu F., seus olhos brilharam e deu um sorriso de deboche.
– E aí, filho da Manca! – exclamou J. “Manca” era o apelido da mãe de F., por esta não ter uma das pernas.
F. o encarou. As pessoas na sala ignoravam totalmente os dois, como se não estivessem ali.
J. se aproximou e segurou o cabelo de F. com a mão direita. Puxou seu cabelo com força e em seguida cuspiu em seu rosto.
F. tentou fazer J. parar, mas era impossível. J. era muito maior e mais forte.
O professor de Filosofia entrou na sala. Imediatamente, J. soltou F. e sentou-se em seu lugar.
F. difundiu-se em pensamentos.
Ora sim, ora não. Era inconstante. Mas que algo iria mudar a partir daquele dia, disso ele tinha certeza.
As aulas se arrastavam, uma após a outra.
Meia hora para acabar a última hora. Tempo suficiente. F. engoliu em seco e foi em direção à lousa.
A professora de Geografia corrigia atividades e não percebeu quando F. pegou um giz e começou a escrever.
“O mundo é prepotente, indigno de pena e sofrível. Nada é o que parece. A falsidade sempre prevalecerá. Viva a violência!”
Algumas escassas pessoas levantavam a cabeça e liam o que estava escrito.
F. foi em direção à sua mochila, e tirou lá de dentro a garrafa de gasolina. Andou até a carteira de J., agachou-se e cochichou em seu ouvido:
– Te vejo no Inferno.
Jogou o líquido sobre o rosto, cabelo e roupas de J., que parecia se infiltrar em seu corpo como água à terra.
Antes que J. pudesse fazer algo, F. riscou o fósforo, e naquele segundo, ele percebeu o que estava fazendo. Viu o que deveria ver.
Não era pena, nem perdão.
F. viu J. rasgando seus livros na sua rente, o espancando no rosto e deixando marcas no estômago, quebrando seus aparelhos, rasgando suas roupas, o humilhando…
Atirou o fósforo aceso no corpo de J. que como uma dança, começou a se movimentar graciosamente, flamejante, brilhante, de um lado para o outro.
F. não conseguia ver mais nada além de seus problemas sendo queimados na sua frente. Não ligava para os gritos histéricos, as expressões horrorizadas ou para o urro de dor gutural que saía daquela incrível bailarina-tocha.
O corpo ainda dançava – a dança mais bela do que nunca. F. sorria. Os estalidos de fogo eram música da mais alta classe, feita de corpo, alma, de vingança sossegada.
Até que a dança parou.
Toda aquela dor, todos aqueles problemas, toda aquela maldição jaziam carbonizados aos seus pés.
F. deu uma gargalhada gostosa.
“Talvez o ser humano não seja assim tão doente”, pensou.