Silêncio Ainda Maior

- Um pouco...

Disse ela após o longo momento de silêncio. De frente pro espelho, pintava os olhos e se perfumava. Os cabelos molhados escorrendo pelo pescoço, exalando o aroma do xampu de ervas. Dia quente e abafado, podia-se ver pelo espelho a janela e atrás dela o céu alaranjado com rastros dourados de nuvens. Ao lado da janela, a cama de lençóis brancos na qual estava Carlos, a imagem espontânea do homem despojado, camisa semi-aberta, gravata desamarrada. Usava sapatos, o que irritou Anita, que até pensou em repreendê-lo pelo ato e estava prestes a fazê-lo quando foi pega de surpresa pela pergunta de seu amante.

- Você me ama?

Três palavras que a acertaram em cheio na cabeça. Parou por um segundo e levou as mãos à beira da penteadeira. Abaixou a cabeça e Carlos teve de repente a impressão de ver sumir as feições do rosto de sua amada como fumaça se dissipando no ar, desvanecendo. O baque fora maior que a vez em que Jorge bateu o carro, já fazia sim algumas semanas que desconfiava estar sendo traída, mas guardou a incerteza para si e achou melhor não ir atrás de respostas mais concretas, então vieram as saídas nas noites de sábado, os atrasos, o cansaço de natureza desconhecida, o cartão de uma floricultura no bolso do paletó e o perfume enjoativamente doce estagnado na gola da camisa. Numa noite de domingo, ela passara pelo jardim de inverno quando o viu ao telefone, do lado de fora, parou atrás de uma das colunas da varanda, mas não conseguiu ouvir toda a conversa, apenas reter algumas frases, como “Use o vermelho, você sabe como me enlouquece...”. Caiu em prantos na mesma noite, fora terrível para ela, que tinha a certeza de que nunca se adaptaria a essa situação, nunca iria contra os valores morais, todos aqueles juramentos no altar, de frente para o padre, indo agora por água abaixo graças a uma terceira que havia se “enfiado” entre os dois, Jorge, Jorge! Como ousas fazer isso comigo?, a situação rendeu lágrimas para a semana inteira, cessou no sábado, quando ele a chamou para a festa da empresa, ela, enxergou no convite uma oportunidade de se reerguer. Tingiu os cabelos e usou o vestido mais decotado de toda a sua vida (pegou emprestado com a Lúcia), na festa bebeu além da conta e se insinuou diversas vezes para Afonso, amigo de Jorge. Na volta pra casa ele não disse nada, o mesmo silêncio ensurdecedor que agora invadia o quarto de hotel pairava no carro, a respiração começou a ficar pesada, arfante, e então ela explodiu em lágrimas e se atirou sobre o corpo do homem, desferindo socos e bofetadas. Terminou naquilo, o carro de encontro ao murro. Um braço quebrado e três dentes a menos. Por sorte ou ironia ela sofreu apenas um arranhão na testa e uma torção no braço direito. “Que papel miserável...” pensa Anita ao recordar a cena. No dia seguinte viu que não havia nada a fazer se não aceitar com submissão seu posto de mulher traída. Tudo bem, ela poderia viver com isso, ser condescendente, mas por seu filho, apenas, que nascera diferente e precisaria dos pais, dela, principalmente, até muito tarde, talvez até o fim de sua vida.

Agora estava ali, diante do espelho, fingindo procurar alguma coisa na gaveta para fugir da pergunta, do ultimato. “Você me ama?”, a frase parecia ecoar pelo quarto, crescer gradativamente junto ao som do trânsito e das hélices do ventilador de teto. Carlos, Carlos, desde quando? Fora em 92, no auge da juventude, numa festa em família que fora com Jorge. Ele queria ser poeta e correr mundo, falava bonito e tinha um sorriso largo, diz ter se encantado com a moça que entrara acompanhando seu irmão, num vestido florido de verão e na cabeça uma indomável cabeleira crespa e alourada, e que fora ainda maior o encantamento quando a tal moça tirou os sapatos para dançar e a viu no meio do salão, rodopiando descalça e sorridente nos braços de Jorge. E agora a via ali, de costas, o rosto apagado olhando para além do espelho. O som do trânsito de cidade grande ecoando nas paredes caiadas de branco do quarto minúsculo. O fim de tarde dourado.

“Um pouco...”, disse ela.

E o silêncio foi ainda maior.

WsCaldas
Enviado por WsCaldas em 03/10/2012
Código do texto: T3914398
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