Eu não sei dançar
Chegamos no barzinho faltando 10 pras 9 da noite. A partir das 9 horas tinha que pagar a entrada, por isso chegamos cedo demais.
O local fica na Lapa debaixo, ao lado de uma famosa churrascaria, a uns 10 minutos da estação de trem.
Fomos procurar uma mesa, eu e a minha namorada, para aguardar os amigos que viriam do trabalho onde ela ganha o pão de cada dia.
O barzinho estava cheio, e a minha namorada dizia que ainda estava vazio, que muitos chegam depois das 10. Pensei comigo: “Ai, ai, ai. Já não suporto esse barulho, não sei dançar (o que é o meu maior pesadelo ao lado dela) e isso aqui cheio de gente”...
- Disse alguma coisa. – Perguntou Júlia, minha namorada.
- Não, nada. Acho que estou pensando alto demais.
- E o que você está pensando? – Insistiu.
- Que essa noite vai ser ótima.
- Vai mesmo, espera só o pessoal do serviço chegar. – finalizou ela toda contente.
Puta que o pariu viu, acho que já me arrependi de ter vindo.
Lembro do momento em que ela me convidou:
- Amor, sexta eu vou num barzinho com o pessoal do meu serviço, tá afim de ir?
Isso queria dizer que eu indo ou não ela iria de qualquer jeito. No intervalo da minha resposta, passou um monte de coisas pela minha cabeça. Caso eu não fosse; ela dançaria com um monte de caras, outros iriam olhar minha namorada dançar, ela poderia beber além da conta e alguém se aproveitar dela, quem será esse pessoal do serviço?, será que todos têm namorados ou namoradas?
E se eu for; vou passar vergonha por não saber dançar, posso ficar nervoso com tanto barulho e tanta gente ao mesmo tempo, pode sair empurra-empurra, eu posso não ter assunto para conversar com os amigos dela e aí vai ficar um clima chato...
- E aí amor, vai ou não?
Disse inconscientemente:
- Vou.
Ela pulou pra cima de mim e me abraçou dando um beijo.
- Ai que legal amorzinho. – Disse ela sorrindo.
Achei louvada a atitude dela. Se ela ficou feliz, é porque queria mesmo que eu fosse, não me convidou por convidar.
Eu e Júlia temos um relacionamento muito tranqüilo, saímos juntos muitas vezes, noutras cada um faz o seu rolê.
Pedi um vinho para me esquentar e alegrar. Nunca acreditei que bebida me desse mais coragem, mas pra essa noite eu fazia qualquer coisa para tirar essa cara de marinheiro de primeira viagem.
Já havia dado 10 horas e ninguém aparecia. Conversávamos sobre nós para passar o tempo. Eu sempre procurando assunto, morrendo de medo que ela olhasse para os lados e visse todos dançando e me chamasse pra dançar. Já pensou, eu todo duro ao lado dela que sabe dançar de tudo?
Seria um vexame dos diabos. Por isso ia tentar enrolar até às 4 da manhã.
Nem dois pra lá, nem dois pra cá, o máximo que eu sei fazer é balançar a cabeça de um lado a outro. O que não me salvaria nem a pau.
Percebi que muitos naquele barzinho não sabiam dançar, mas se saíam bem na enganação, pulando, indo de um lado a outro, balançando o corpo de qualquer jeito e tudo mais. Mas eu me sentiria envergonhado só de fazer isso, imaginando o tanto de gente que estaria me olhando. Em locais assim, parece que todos estão com os olhos voltados para você. O medo crescia cada vez mais que eu já estava com o rosto todo molhado.
- Amor, você está suado. Tá passando bem?
- É o calor.
- Mas aqui não tá tão calor assim.
Comecei a me abanar com a plaqueta da comanda e desviei o assunto da conversa. De fato não estava calor, o local tinha muitos ventiladores e estávamos longe da pista de dança.
Finalmente os amigos chegaram, eram 2 casais de namorados, 1 casal de noivos e 1 casal de casados. Acho que é assim, sei lá. Pelos menos já sabia como iniciar a conversa:
“Olha só, temos as 3 fazes dum relacionamento. Como é ser casado? E vocês, quanto tempo demoraram para noivar”.
Estava me sentindo um idiota.
Uma jovem que mal havia sentado se sente inquieta e diz:
- Ai gente, eu não vim aqui pra ficar parada não.
Desgraçada lazarenta. Xinguei bem baixinho. Levantei-me e perguntei onde era o banheiro. Iria dar uma escapulida. Assim que me ensinaram o caminho, saí quebrando as canelas nas mesas e cadeiras do local. Chegando no banheiro já não estava vendo nada. Lavei o rosto e comecei a me olhar no espelho. Estava me sentindo inferior á todos daquele barzinho. Esqueci de todas as minhas qualidades e só me xingava por não ter aprendido a dançar ainda. No dia seguinte nem vou dormir, vou correndo procurar uma academia de dança.
- Meu Deus que pesadelo.
Fui ao mictório. Enquanto tirava água do joelho prestava atenção em dois sujeitos que entravam dando altas gargalhadas. Senti inveja deles.
- Mano, você é mó vacilão, nem xavecou a mina e já foi beijando. E se ela tá com o namorado. – Disse um deles ainda rindo.
- Que namorado o quê, essas minas vem tudo atrás de homem rapá. E hoje tá cheio delas. Vou pegar várias.
Antes mesmo de terminar o que estava fazendo, joguei o meu pinto respingando pra dentro da cueca e corri do banheiro sem lavar as mãos.
Ia em direção á mesa onde estavam todos. No caminho via vários casais dando amassos pelos cantos, sentia mãos apalpando a minha bunda e outras me puxando para dançar. Corri mais que depressa daquela pista de dança.
Sentei na cadeira ao lado de Júlia e segurei forte em sua mão. Ela me olhou assustada. Sorri com disfarce.
Um casal já havia se retirado da mesa para dançar. Rolava uma conversa sobre o serviço deles, ainda bem, pois era assunto que não tinha como entrar. Mas para não ficar sem graça, simulei que o meu celular estava vibrando e atendi. Fiquei conversando com o nada durante uns 15 minutos. Depois que desliguei, a Júlia quis saber quem era:
- Era o fulano lá do trampo que não foi trabalhar hoje. Ele queria saber como tinha sido o dia.
O rapaz que estava ao meu lado aproveitou o embalo e perguntou qual era o meu ofício. Respondi empolgado, vendo que tinha um assunto, pelo menos naquele momento. E ia tentar prolongar o possível para segurar todos naquela mesa:
- A minha formação é tal, mas no momento trabalho com blá, blá, blá. Tenho a função de blá, blá, blá e trabalho das blá, blá, blá, até às blá, blá, blá. Trabalho cinco blá, blá, blá por semana.
E tome blá, blá, blá. Tanto de mim como dos outros. Já estava achando que seria mole vencer aquela balada, era só gole de bebidas e blá, blá, blá. Mas, um tremendo filho da puta se levantou e convidou todos para ir dançar. Tremi as pernas. Procurei assunto rapidamente. A minha namorada chamou:
- Vamos amorzinho.
- Daqui á pouco gata, faz mais um tempinho aí. – Tentei enrolar fazendo pose com o copo de vinho.
- Tá bom. Termina de beber esse copo, aí a gente vai.
Agora teria de enrolar com aqueles dois dedos de vinho no copo. Todos foram para a pista, na mesa só eu e ela. Olhei no relógio e ainda ia dar meia-noite.
- Puta merda viu.
- Ahn? – estranhou Júlia.
- Este tênis novo está apertando meu pé.
De repente, como num desenho animado, surgiu uma lâmpada em cima da minha cabeça. Fui disfarçar o palavrão e arrumei um pretexto para evitar a pista.
- É esse maldito tênis dos diabos que resolveu justo agora apertar o meu pé.
- Mas você já usou esse tênis outras vezes, e nunca reclamou de aperto. – Disse Júlia inocentemente.
- Deve ser porque meu pé tá inchado. Trabalhei de pé o dia inteiro.
E conversa vai, conversa vem, chega o primeiro casal que saiu para dançar.
A moça pergunta:
- Júlia, você não vai para a pista? Tá da hora.
- Estamos indo, você acha que vou perder?
Vi que agora não teria escapatória, Júlia iria insistir até eu ceder, com o pé inchado ou não. Acho que ela já estava desconfiando que eu não sabia dançar.
Estamos juntos há quase um ano e Júlia ainda não tinha dado atenção a esse fato. Saímos várias vezes, mas nunca para um local dançante. Essa é a primeira vez. Ela nunca perguntou se eu sabia dançar. Talvez ela até sabe disso, mas não imagina que eu sou uma verdadeira negação e que isso tudo é um pesadelo para mim.
Ela levantou e disse que iria ao banheiro. Enquanto Júlia caminhava de costas para mim, eu fiquei pensando numa estratégia para me salvar e talvez salvar o meu namoro. Sim, agora fui assaltado por esse medo também, já que lembrei de Vinícius de Moraes que dizia que num relacionamento o homem tem que saber fazer de tudo um pouco, caso contrário pode ficar solteiro.
Então me decidi. Levantei e pedi licença ao casal que trocava beijos. Eles nem me deram atenção.
Fui para a pista e afastei-me para um canto. Observei tudo e aos poucos fui me embalando vergonhosamente aproveitando o pisca-pisca da iluminação e as pessoas que dançavam loucamente. Tudo isso pr’eu ver se dava para enganar.
Minhas mãos iam de um lado a outro, a cintura nem dava sinal e os pés pareciam ser ligados às mãos, pois mexiam iguaizinhas. Sei que estava balançando, só não estava no ritmo da música. Já começava a me empolgar e ter esperança, mas a lazarenta de uma jovem chegou até mim dançando e falou que eu estava todo desengonçado, que era pra se mexer mais e entrar no ritmo.
Rapaz, aquilo me desconsertou totalmente. Não sabia onde enfiar a cara. Comecei a suar e um formigamento tomou conta do meu corpo. Decidi correr daquele barzinho e nunca mais voltar, parecia que todas as atenções estavam voltadas para a minha figura de aprendiz fracassado. Juntei os meus pedaços e saí apressado, trombando nas pessoas pelo caminho e desejando que elas quebrassem as pernas, de tanta inveja que eu estava sentindo.
Passei por toda a pista e pela arena das mesinhas. Quando estava chegando no hall de saída, senti uma mão segurando o meu braço.
- Hei, onde você vai mocinho?
Era a Júlia que me procurava:
- Amor, me perdoe, mas estou indo embora.
- Embora? Por quê? Num tem mais condução a essa hora. Você não está bem?
- É, não estou.
- O que você está sentindo, amor, é o pé?
- Não, é decepção.
- O quê?
- Vamos sentar num local mais tranqüilo que te explico melhor.
- Tá.
Voltamos para a mesa. Os amigos da minha namorada estavam dançando, só o casal estava sentado esperando a gente chegar para sair. Ficamos á sós.
- Júlia, é o seguinte: Eu não sei dançar.
- Como assim não sabe dançar?
- É, não sei.
- Olha em sua volta. Você acha que essas pessoas sabem dançar?
- Bom, pelo menos enganam.
- Então. Todos nós enganamos, de uma forma ou de outra. A gente sabe dançar, mas é outro tipo de dança. Tenta entender o meu raciocínio. Todos nós, dessa classe social, já sabemos dançar desde o nascimento. Se não soubéssemos estaríamos num transatlântico curtindo algum show carérrimo, com pompas e tudo. Estamos aqui nesse barzinho porque bailamos a semana inteira num serviço onde somos apenas máquinas produtoras, recebendo ordens por um mísero pagamento.
O desespero, o suor e o formigamento foram indo embora. Aos poucos fui ficando relaxado. A Júlia sabe me acalmar.
De repente comecei a me interessar e dar mais atenção àquilo que ela falava. Tipo uma aula de filosofia para calouros na balada.
Porra, pior que é verdade o que ela está falando.
Meus olhos começaram a marejar de felicidade, não sei se foi de orgulho da inteligência dela, ou pelo despertar de algo novo dentro de mim. Que momento estranho.
Ela continuava a falar, ou melhor, a dissertar sobre o que é dançar num país onde para o povo, felicidade é carnaval, futebol, um aparelho de TV e um crediário nas Casas Bahias.
Enquanto ela comentava, meus olhos davam uma volta pelo ambiente. As pessoas ali ficaram pequenas para mim. Eles não dançavam a música, dançavam o cotidiano. Em cada gesto dos braços e das pernas, era lançado um pedaço de angústia. Aquela dança era uma válvula de escape. Ali eram descarregadas as dúvidas e incertezas da nossa vida indigna. As dores e raivas acumuladas no dia-a-dia: A partida final dos parentes, as brigas familiares, a degladiação entre nós mesmos, as misérias, os ricos, a inexistente distribuição de renda, a exploração, os impostos, tudo, tudo, tudo. Tudo mesmo.
E ela finalizava os seus argumentos para me levar á pista de descarrego.
- Todo brasileiro tem um pingo de indignação contra tudo isso aí, acredito que o homem é o fruto do meio. Mas agora não é hora de discutir os problemas sociais do país, vamos dançar.
Ela começou a puxar o meu braço e eu ainda resistia.
- Péra mais um pouco.
- Vou esperar nada. Você tá pensando que alguém vai ligar se você tá dançando bem ou não? Engano seu meu amor. Vamos.
Chegamos na pista e demos início à dança, quer dizer, ela dançava, pois eu, só mexia da cintura pra cima. Fazer o quê? Eu não sei dançar.