Atrasado

Ele abre os olhos, vira para o relógio, que está no criado mudo colado com o travesseiro, fecha os olhos lentamente, então abre mais uma vez, mais uma olhada, fecha de novo.

- 11 horas. – Fala pra ele mesmo. Ainda de olhos fechados.

Arregala os olhos como alguém que acaba de descobrir algo muito importante.

- Cacete, 11 horas, o relógio não despertou.

Pula da cama, pega a calça que está no chão começa a vestir, então se lembra que ainda esta de pijamas, tira a calça, pensa: “porque as bocas das calças se afunilaram tanto”, enquanto sofre pra tirar a da perna direita. Finalmente consegue então arranca o pijama como um desses mágicos com roupa de velcro. Volta a colocar as calças ‘skini’, da moda. Preferia quando as calças boca de sino estavam na moda. Coloca a camisa.

- O que eu vou falar? O que eu vou falar? Transito não, já usei semana passada, morte, também semana passada, doença, também semana passada. Tenho que parar de chegar atrasado.

Vai direto para o banheiro, pega a escova de dente, coloca um tanto de pasta de dentes que daria para escovar os dentes de um tubarão branco, mete a escova na boca, com uma mão escova os dentes, com a outra penteia o cabelo. Termina o cabelo e a boca. Enxagua a boca, o rosto e sem querer o peito. Corre trocar de camisa.

- Já sei vou falar que bati o carro. Mas se bem que não tem amassado. Vou ter que bater o carro no caminho.

Corre pra cozinha, coloca a agua pra ferver, enquanto vai dando os últimos retoques, ajeita a calça, ajeita o cinto, vai ajeitar a gravata, não está de gravata.

- A gravata.

Corre para o quarto, começa a procurar a gravata.

- Cade a gravata.

Vai jogando as roupas pra cima como num truque do circo de solei. “nada aqui, nada aqui, nada aqui”.

- Amor cadê minha gravata.

- Qual?

- Qualquer uma.

- Não sei.

Pela primeira vez, desde que ele acordou ele para, para olhar pra ela, que não se da ao trabalho nem de olhar para ele. Na cozinha a chaleira apita, tirando-o do transe. Ele volta a procurar.

- Meu Deus cade as minhas gravatas?

- Pra que gravata?

- Pra me enforcar!

- Estão no armário de roupas pra dobrar.

Ele corre até lá. Enfia a mão. Pega a primeira gravata que encontra. É a amarela mostarda. Vai essa mesmo. Começa a dar o nó enquanto se dirige para a cozinha. Desliga a chaleira. Procura o filtro. Nada.

- Tenho que comprar uma cafeteira.

Desiste de procurar. Desiste do café. Volta para o quarto.

- Como eu bati? Como eu bati?

Enfia os papeis que estão jogado na mesa do computador pra dentro da bolsa.

- Como você bateu o que?

- O relógio não despertou, estou atrasado, o Miranda disse que se eu chegasse mais uma vez atrasado seria mandado embora. Vou ter que bater o carro.

- Como assim atrasado? Hoje é feriado.

Ele para de enfiar os papeis na bolsa. E novamente olha para ela. Que dessa vez pelo menos está olhando para ele.

- Feriado?

Ela só balança a cabeça, dizendo que sim, com um sorriso no rosto. Ele solta os papeis. Vai em direção a cama, já afrouxando a gravata. Senta na cama, tira o sapato e percebe que estava indo com um pé de meia diferente do outro. Tira a camisa e a calça, dessa vez sem sofrimento. Deita. Encosta a cabeça no travesseiro. Fecha os olhos.

- Temos que comprar uma cafeteira.

Afonso Padilha
Enviado por Afonso Padilha em 01/10/2012
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