Rosa Maria e a estrela
A estrela estava lá no chão ele jurava que sim. E Rosa Maria estava muito cansada. Havia tirado o esparadrapo do pé e colocado um pedaço de algodão, não deu certo o algodão subia e descia conforme caminhava . Sangrou. Deve ter estragado a unha pintada, não sabia por que havia pintado as unhas dos pés, ninguém iria ver um pé na entrevista, seu pé fala inglês, conhece informática,esteve na Itália, morou lá e o esmalte deve ter grudado na meia. Sentia-se melhor indo bem arrumadinha na interview....evite os decotes,certo decoro, depois o decoro poderia ir pra cucuia, ela virou amante do chefe..acontece. Viu diretores com família para sustentar serem demitidos porque a secretária não gostou quando ele entrou na diretoria sem se anunciar ou dizer bom dia – a atração vira poder...vira morte; na tal interview , não fumar , não gesticular muito, nem muito agressiva, nem muito servil, não cruzar as pernas, respirar pode? Estava voltando para casa, contou as moedas- dois reais e dez centavos (não vai dar nem para o ônibus..droga fui dar esmola para o pedinte...tia me dá um trocado pra comprar m lanche to com fome, moro pros lados de são Mateus..meus fio tá passando necessidade)tal, e tal, a ladainha de sempre. Não tinha coragem de negar. A mulher do lado olha com irritação que serpenteia pela sobrancelha de porco-espinho, a senhora dá e eles vão beber , eu não dou –que vão trabalhar, vagabundos; por que tanta raiva, ninguém gosta do espelho constante que fica ali na sua frente mostrando seu lado infiel. Gostamos da sombra que o sol nos dá, mas sem o rosto. Ela dava esmola, achava o ato de pedir uma penitencia terrível. Ela também não estava pedindo por emprego, seria a mesma coisa? - Preencha este folheto e aguarde na sala ao lado, sala fria, ar condicionado no último, vaso transparente sobre a mesa da recepcionista transparente que mexe o cabelo de um lado para o outro, pra pegar no tranco, diz o filho, preenchia, nome, endereço, estado civil, qualificações profissionais, experiência anterior, o porque de ter deixado o emprego anterior,(não mudei, meu projeto não foi aceito, bem que os diretores fizeram força mas o diretor era tão obtuso, olhos que ficavam rodando, rodando, não se fixavam em nada desconfiança e ressentimento escondidos atrás da miopia) todos naquela empresa eram donos, todos, todos que tinham mais de dez anos de firma, eu sei ,sou do tempo que os donos moravam no Brás, sou do tempo em que escreviam em papel de pão, sou do tempo em que o pai era vivi, eu sei tudo. Todos eram de algum tempo atrás de valor e ela não pertencia a esse tempo , era do tempo presente e era uma empresa estranha e triste. Nunca entendeu o porque. Um ressentimento disfarçado em gestos de civilidade tosca alastrando-se chegando até os porteiros malcriados. No presente havia uma raiva comedida pelo baixo salário, á falta de iluminação ,ao calor sufocante, aos atrasos no pagamento, á desesperança. Os diretores, apreensivos, um deles enfrentou a situação criada pelos projetos, o outro, acuado, diminuiu de tamanho, quase ninguém lhe dirigia a palavra, em passando pelos corredores, grunhiam um bom dia e andavam encostados na parede, por vezes achava graça. Enviaram uma funcionária com ar ausente para verificar seu aproveitamento, sua competência, quantas horas usa para fazer tal serviço, quantas com o arquivamento, quantas, quantas, tudo em horas o tal relatório foi enviado ao diretor acuado, desenvolvimento de tarefas abaixo do sofrível; - é melhor, talvez...sair deixar pra lá, não deu certo, são muito atrasados, inveja, seu nível é alto. Nova chance, novo relatório enviado. Ninguém mais fora avaliado, somente ela. Nota acima da média quem sabe agora, o olhar do acuado também se encosta na parede, pensa no carro importado, casa, filhos na escola; - vamos ver, vamos ver, ela fica. Distanciado e tenso, empurra para cima uma calça imaginária( não posso me arriscar, sempre me taxaram de temerário), recua a cadeira para trás e empurra a mesa, vamos tentar, é um desafio. Não era. Já havia desistido. De ser, de tentar, fica somente o espremido, numa sala espremida, vida espremida grudada no seu olhar de cão de rua que caminha depois que anoitece, assustado e perguntando se pode vir com a gente, me leva com você, sou um cão bonzinho. Há mudanças de espaço físico. Não pode ficar ao lado da funcionária de dez anos de casa. Miúda de corpo e alma disfarça a vida de miséria com fala mansa, vez em quando, a raiva esperneia na voz esganiçada e nas mãos pequenas que jogam com estupidez o relatório sobre a mesa, a ganância amarelada escorre por seu rosto traiçoeiro e já a “panelinha” se estabelece, suas solicitações são recebidas com descaso e antipatia. Sai. Está muito cansada. Caminha pelas ruas friorentas , suspira fundo seu apartamento está às escuras. Sonha com a mãe e pai pendurados do teto, um fio comprido, voando,voando, o pai com uma luz dourada em torno e asas, a mãe de vestido branco com debruados azuis, meio atarantada, tantos filhos para olhar,acarinhar, a mãe lhe estende uma estrela pequena ,ela se lembra do que ela cantava quando criança; no dia que eu aprendi a andar, mamãe me deu uma estrela pequenina e o céu foi ficando escuro...escuro. Foi encontrada no dia seguinte pelo zelador que entregava jornais , no chão da cozinha , calma e sorrindo. Apertava uma estrelinha que ainda brilhava e que se esfarelou quando ele abriu sua mão endurecida. O zelador jurou que era mesmo uma estrela. Ninguém acreditou