Dona Mafalda e o protocolo
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DONA MAFALDA E O PROTOCOLO
A senhora Mafalda Fragoso dos Remédios já estava aposentada e viúva quando foi chamada para trabalhar como funcionária numa empresa; e havia até se esquecido do teste, bem que na época dos exames esbravejou contra os critérios de pontos para os que já trabalhavam na firma, se é assim, então tem que contar meus pontos trabalhados anteriormente não é mesmo, mandou até carta para autoridades, nunca responderam aos seus e-mails, destinatários fantasmas e fantasma não responde e-mail, desistiu e então, foi cuidando de seu cachorro velhinho, de suas plantas e das crianças no hospital . E era quando gostava de colocar o uniforme das voluntárias, mesmo um orgulho passar pelas ruas e olhares, olha, ela é voluntária no hospital, a senhora é um exemplo para todos, facilitavam o seu lugar no ônibus e sorriam. Era do bem a dona Mafalda, ficou viúva de um casamento feliz, o único filho era um tesouro, casara-se à pouco e a nora era um presente de Deus. Quando o telegrama chegou, portanto, nada havia que a pudesse aborrecer exceto pelo que recebia mensalmente e que a obrigava a certos malabarismos, mas também, no Brasil, todo mundo é artista de circo mesmo, e assim pensando, foi atender ao chamado da instituição vinculada ao social e isso lhe foi explicado durante meia hora por um gerente de relações humanas muito simpático e com uma gravata cheia de arabescos e como ele explanou tão minuciosamente a origem da empresa, os contratempos e a luta de seus funcionários por uma vida mais digna, como explicitou entre um sorriso meio congelado (ela pensou sobre esse pormenor muito tempo depois), como a finalidade primordial da instituição era servir a sociedade em especial os mais desafortunados e que portanto o dinheiro e o valor econômico vinham sempre em segundo plano, dona Mafalda, que era do bem, se entusiasmou de imediato e foi um tal de ver uma faxineira, um zelador para passear com o cachorro velhinho, uma mudança de horário da ginástica, eis que dona Mafalda era adepta de exercício diário, um tal de colocar bobs todas as noites, comprar pilha nova para o despertador, enfim, lá se foi ela trabalhar, munida dos mais sinceros sentimentos em favor dos necessitados. Como é comum acontecer, de início se atrapalhou com o serviço, era um tal de alimentar constantemente o computador com informações, número do processo, número do memorando, número do ofício, número das páginas do processo, números e mais números que o computador parecia mastigar sem parar e isso sem contar os carimbos, carimbos para o diretor, para o gerente, para o sub-gerente, sempre com lugar adequado para os mesmos assinarem, presta atenção em não por o carimbo muito em cima, senão não dá para o senhor Coutinho assinar e ele detesta não ter espaço para assinar e também tem que numerar as páginas que chegam, e carimbar os processos que chegam, e carimbar os processos que saem, tem que carimbar os que ainda não são processos hein, e disse isso como uma piadinha, um chiste, e a companheira a olhou com desconfiança:
- Brincadeirinha minha filha; como dona Mafalda era ágil, levava os documentos de cá pra lá e de lá pra cá, você vai andando é bom pra conhecer as colegas lhe informa a companheira de sala com ar de comando disfarçado em boas intenções, e ela subia e descia vários andares, até porque já estava acostumada com os mandos e desmandos de alguns mal intencionados, escondidos sob a capa de solidariedade encardida, tramitava, tramitava,os processos tramitavam e emperravam, emperravam e tramitavam, e as horas passavam rápidas, advogados corriam de lá para cá, com ar desesperado e confuso. Estava um pouco aflita a dona Mafalda, afinal não trabalhava mais já há cinco anos, vai sendo apresentada para outros companheiros de trabalho, uma baixinha de sorriso gentil, uma loura grandalhona, simpática e meio assustada, um mineiro de fala carregada e alma mais carregada ainda, disfarçada por piadas e um sarcasmo brincando de esconder, mais uma loura que se chicoteia com certa precisão, que quem não estuda na juventude , depois rala, eu to ralando aqui. Seu chefe direto era jovem e aflito, jovem e estressado, jovem e nervoso, a senhora digite este memorando, ponto um fulano pede solicitação para viagem, ponto dois, informe o local para onde ele vai e grunhe uma última palavra que dona Mafalda não entende, assusta-se e informa que não pode abrir o tal computador boca de leão, pois não tem a bendita senha. Ali, naquele preciso ponto, tem início a real aflição de dona Mafalda, o chefe mastiga qualquer palavra quando ouve a explicação, o interessado se irrita: -Ai que estou nessa bosta de cidade, quero voltar pro interior e não consigo uma pessoa pra me bater esse memorando, essa aí num tem senha a outra tá almoçando, bem que avisei pra fazer antes; e foi tanta a ladainha e os nomes feios que dona Mafalda ficou apalermada no meio da sala atendendo telefonemas num telefone sem números, pensou nos testes que são feitos em reality shows, vai ver que estou num reality show, a outra funcionária retorna do almoço e sorri um sorriso que se abre em leque compassado quando ouve o choramingo do interessado no memorando. E dona Mafalda admira-se com o quase sossego com que ela dirige-se ao computador; eis que a coisa começou a desandar mesmo, quando descobriram que dona Mafalda chegava sempre cedo; aí, foi um tal da cara colega chegar mais tarde e ficar duas horas fora almoçando, foi um tal de pessoas virem de outras salas para pedir que dona Mafalda fizesse telefonemas, os quais eles mesmos poderiam fazer, foi um tal dela andar de cima para baixo e de baixo para cima com os tais processos, um tal de alimentar o computador boca de leão que nunca se satisfazia e, quando, uma manhã, comentou sobre o excesso de burocracia que emperrava o trabalho, nuvens negras desceram do céu. Alguns pararam de tomar o café, outros a olharam como se tivesse afrontado a presidência da república com cocô de vaca na mão :
- Acho que a senhora não entendeu o espírito da coisa, nós aqui, zelamos pelo bem estar do povo brasileiro, e, tudo está devidamente controlado e verificado, simplesmente, lhe explica a jovem com quarenta e cinco dentes, simplesmente o nosso chefe não pode administrar o dinheiro alheio e não cuidar para que ele tenha o fim para o qual foi destinado, a senhora veja a mídia como é cruel para conosco, é só ver os jornais e os quarenta e cinco dentes avançam e retrocedem conforme ela explica. Ocorre que, dona Mafalda, como já mencionado antes, era do bem, e por, do bem, entenda-se afável, alegre, bem intencionada, esperançosa, mas não estúpida ou alienada que são coisas diferentes e que, por vezes, são confundidas com pessoas do bem e, em assim sendo, percebeu que havia algo que poderia ser mudado no caso em questão, pois bem que poderiam adotar um outro processo mais ágil e eficiente na resolução dos mais de mil processos que circulavam diariamente pelas seções advogatícias até poderem alimentar o computador boca de leão. Uma reunião semanal entre todos os diretores, onde cada um colocasse em prática o decidido, diminuiria pela metade o fluxo dos papéis e carimbos e arquivos e isso foi dito com a calma e gentileza que lhes eram peculiares, numa reunião em frente a tal máquina de café, ponto de encontro de todos os funcionários. Mas aí foi um Deus nos acuda, foi quando o bicho pegou. Não que a tratassem mal, em absoluto, apenas e tão somente transformou-se num fantasma no recinto, um ser de outro mundo, um encosto, um coisa ruim, um espírito do mal, nem o contínuo que lhe entregava os processos para o computador boca de leão mastigar, antes tão falante e altaneiro, nem ele, quando ela lhe sorria ele abaixava a cabeça, contrafeito, os advogados passavam tão rápidos em seus skates imaginários, que não dava tempo de cumprimentá-los. Os documentos em sua mesa rarearam, foi lhe dito que seria transferida para a seção de arquivamento onde sua única função seria a de dividir cada documento por data e número e arquivá-lo e nessa seção costumava contar as baratas que, vez em quando apareciam, mas, como também eram baratas-funcionárias, fingiam que não a conheciam, afinal a gente levou anos para estabelecer um sistema onde nossos salários permanecessem intocados e vem essa louca querendo desmantelar tudo, já pensou, a gente resolve todos os processos em reuniões, como a cara colega queria e tem que fechar a empresa, não vai mais ter trabalho, é fechar e ficar desempregado, afinal temos filhos, família, dona Mafalda ouviu a conversa sarcástica das baratas, houve por bem entender a questão de todos, não era juiz de ninguém, e também houve por bem demitir-se, até porque sua rinite alérgica havia voltado com vigor no meio de tanta poeira. Ninguém a cumprimentou, ninguém a saudou, até porque não se deseja felicidades a um fantasma, ou encosto, ou coisa ruim, ou espírito do mal e dona Mafalda Fragoso dos Remédios voltou a cuidar do seu cão velhinho, de suas plantas, de suas crianças e a fazer sua ginástica. Ainda é do bem, só que muito, muito, mas muito mais esperta.