Milênio em Juquehy
Milênio em Juquehy
Era ano novo em Juquehy – nada sobre esse assunto sabiam as folhas de chapéu de sol, balançavam no berço o orvalho da madrugada quando João atravessou a ponte do fim da praia que gemeu com preguiça sob seus pés descalços. João queria ser jogador de futebol. Estava um pouco cansado.
Mesmo no ar ainda fresco, gotinhas de suor iam se formando em sua testa e queixo que caramba, esse pau tá pesado, a mulherada na praia diz arara, menino traz essa arara aqui e ele riu de soco, seu Leontino da loja dizia, num tá costumado a ri moleque, ocê ri de soco; o pau tava pesado hoje que a mãe trouxe mais mercadoria, a vê se, no ano novo, esse pessoal da praia se anima. João queria ser jogador de futebol. Estava um pouco cansado. O passo de João é quase ligeiro e vai marcando o chão, o pé direito, direitinho, como são todos os pés do mundo, o esquerdo que falta a parte da frente, ficou um toquinho feio e João não é calado por esse vexame da natureza mas pelo vexame da vida que não entende, meio zonzo pelo choro miúdo da mãe quando o pai partiu pras banda de São Paulo e não voltou mais; e ela ficou horas olhando a palha do fogo que ia se contorcendo, só a perna direita dava um tranco de repente, um tremor que ficou pra sempre fincado n’alma. No mais, é só um desassossego quando o calor é muito em Juquehy e as mutucas ferem o toco do que era pra ser um pé, certo aperto no peito quando corre muito e vem uma zoeira na cabeça, a mãe no meio do fumaréu da cozinha que cata com paciência os feijões na mesa, vai separando as pedrinhas, gravetinhos e os feijões carunchados, faz um montinho de um lado, João brinca de caminho com o montinho, olha ai menino , vai misturar o feijão bom com os carunchado, vai achar o que faze moleque, ele sai com as araras quando o dia começa a se esticar; João queria ser jogador de futebol. Estava um pouco cansado. Tonico o segue distraído num trote manso, num dianta mãe que ele num obedece, eu falo prêle voltar, ele se faz de besta, é surdo; Tonico não era surdo, só queria ir até a praia e olhar aquela imensidão de água verde e azul de Juquehy, remexer nas latas de lixo, sempre alguma coisa haveria de achar, admirar os panos que João mostrava meio aflito para as moças e eram panos azuis e rosa e brancos com franjas, peixinhos e estrelas, sóis e luas que dançavam ao vento e andavam no compasso das pernas de João como quadris invisíveis. João queria ser jogador de futebol. Estava um pouco cansado; ia num passo vagaroso, parava um pouco pra suspendê a canseira, que bosta, ainda pôde ver o pessoal da noite que se retirava devagar, siris pequenos e desconfiados, gaivotas que ciscam a areia ficam planando, planando, conchas que se deixam levar meio aturdidas, encalham na beira em suicídio coletivo. João caminha um pouco pela água e o toco de pé se arrasta com precisão formando um sulco na areia, já está perto do primeiro condomínio, barracas grandes como tendas árabes são armadas e alguns o cumprimentam com um aceno de mão; as gotas de suor fazem uma trilha escura na camisa, ele para e descansa um pouco, os vestidos e panos se aquietam bruscamente. João queria ser jogador de futebol. Estava um pouco cansado. Freguesas se achegam e perguntam, experimentam, trocam, pode pegá dona só quinze reais o vestido, tem de outra cor, se não servir de tamanho a gente troca, não percisa pagar hoje, eu venho amanhã, não, eu sei que a dona é honesta, tá certo intão, número do apartamento é onze, tá certo dona pode levá os treis que eu passo amanhã, se não for amanhã, vai sê despois. O sol esquenta a areia, vende mais três shorts, duas cangas, “que as freguesas falam canga”, João se senta na mureta no condomínio das Brisas e olha o mar, comendo o arroz e feijão mornos, batatinhas anêmicas, um naco do que foi um pedaço de traseiro de boi, manga bonita que achou caída no caminho. João queria ser jogador de futebol. Estava um pouco cansado. Mastiga devagar e com paciência, enxuga a boca na beirada da camisa, fica ali balançando as pernas finas olhando os banhistas que passam. Começa o jogo que espera todos os dias que João queria ser jogador de futebol, comprar uma casa esperta perto do mar, comer carne todos os dias, tirar a mãe do fumacê da cozinha, namorar a Leididaiana, filha do seu Moreno que vende chapéus na praia, que essa idéia era pra mais tarde, única hora em que pensava mais aflito no toco do que era pra ser um pé que andasse pelo mundo. Estava um pouco cansado. O pessoal da vila se prepara pra jogar na meia hora de folga, João é convidado, todo mundo conhece sua fama, o João do toco fica na nossa turma, nosso time, a bola vai rolando João se esgueira com precisão, recua, avança, faz que vai, não vai, vai, o toco faz minhocas na areia quente e ele nem sente, o coração batuca, ligeira zoeira na cabeça, um , dois, três gols, logo a praia se enche de pequena multidão pra ver o João do toco, espetáculo hein, já se viu coisa igual, tá cheio de craque no Brasil, nossa, o cara é bom mesmo!!! E, por capricho de um dia de sol em Juquehy, a notícia corre para São Paulo, deu na TV, sê viu mãe e João ri um soco mais encompridado, os dentes são brancos, em serrilha na ponta, em duas semanas um pessoal de clube de futebol o procura, que tal e coisa, a casinha de João é exibida em minúcias, até Tonico aparece caçando uma mosca imaginária; informam sobre os exames médicos, como fica o caso do pé, perguntas sobre o que aconteceu, nascença, explica a mãe desenxabida com a mão sobre os olhos que essas luz são muito forte, não, nunca pensou em ter um filho jogador de futebol, era, era bom filho, ajudava na casa, não sabe se queria alguma coisa com o dinheiro que o filho iria receber como jogador, querer muita coisa na vida, estraga o bestunto, o entrevistador sorri e lhe dá um tapinha amigo nas costas, dona Assunta está querendo dizer que muita ambição estraga a mente, não é mesmo dona Assunta, ela coloca a mão no pescoço com ar perplexo e a perna dá um solavanco inesperado; João a observa assustado, está feliz João, não queremos ser invasivos, não entende a palavra, sorri em soco curto, nem parecer que estamos aqui num circo de horrores ou tirar proveito da miséria alheia, descobrimos esse rapaz na praia de Juquehy jogando bola. Falando com espontaneidade e respeito, sabemos que João é um deficiente físico, cuja atrofia do pé é produto de má formação congênita e, ainda assim, trata-se de um fenômeno esportivo, caros telespectadores. João é capaz de dribles sensacionais, um novo Garrincha se vocês preferirem, embora a nova geração não tenha conhecimento do talento de Garrincha; as dissertações continuam, testes são aprovados, o clube o contrata, João vai ser um jogador de futebol, viaja para São Paulo, passa a dormir no dormitório da associação esportiva com outros oito moleques; está feliz, vi passarinho verde, como diz a mãe, sente no peito um peso maior, deve de ser a tal felicidade. Olha fascinado a cidade alçapão, toma sorvete que tem calda, mãe, usa um tênis que lhe esconde o toco do pé, se Leididaiana me visse agora hein, só vez em quando, à noitinha, sente saudade de Juquehy, seu mar tranqüilo, a ponte que canta, as ilhas em frente a praia, brincos de princesa tombados na mata Atlântica que os vigia. Aguarda os exames médicos, assina papéis que não entende bem, garranchos perplexos, que agora vou ter que estudar, sê gente, cidadão, iguar que nem o moço da televisão de boné e sorriso feliz que está sentado em frente a um computador; o moço que ele via sempre na televisão do seu Leontino e isso quando a tela não estava com o tal chuvisco que fazia seu amigo dar um soco no aparelho, vamo mardita, parece mula, encasquetou de sumir a imagem hoje, pras banda da Boracéia tá se formando uma chuvarada, deve ser por isso que a mardita num funciona e era então quando João ria de soco. Duas semanas após o capricho de um dia de sol, João é informado que tem uma cardiopatia grave, hipertrofia cardíaca, quanto tempo de vida nunca se sabe, com vida regrada, uns bons anos pela frente; uma doença no coração, responde o médico da associação esportiva, há que ter uma vida mais regrada que quando crescer álcool e fumo, nem pensar, não, não se trata do toco de pé, o defeito está no coração e o médico aponta o local onde o órgão está localizado no peito de João, se bem que não se sabe quanto tempo você poderia agüentar chutar bola com essa deficiência mas o pior é mesmo o coração; sim, sentia, sentia um cansaço que vinha num de repente e aumentando com os dias, achava que era o sol ou as araras que carregava; faltava o ar e vinha a tonteira; não, não sabia se estava subnutrido, também desconhece a palavra, só sente uma bola que vai se formando na garganta, não consegue chorar, é só um grunhido de soco, soco, soco, olha perplexo a chuteira que ganhou do técnico, dói o peito, que dor é essa mãe, que dor é essa que eu num conhecia mãe, mãe Assunta vira o rosto e o tranco da perna recomeça, enxuga os olhos com a palma da mão ressequida; o médico o olha constrangido, deveria procurar auxílio público, em Juquehy não há médicos responde aos trancos, tem algum tipo de plano de saúde, não tem plano; mais tarde a diretoria do clube se reúne pesarosa, que merda, o melhor mesmo é mandá-lo de volta logo pra Juquehy se vocês não querem ver a mídia em cima da gente, enchendo o saco! Dá uma indenização pra mãe do menino e, por favor, no futuro, quero primeiro ver os exames desse pessoal antes de passar por palhaço! Convenhamos, fazer todo esse estardalhaço e o menino que tem vida curta, eu hein, já chega de prejuízo, chega; e é ano novo em Juquehy – novo milênio, nada sobre esse assunto sabem as folhas de chapéu de sol, balançam no berço o orvalho da madrugada quando João atravessa a ponte do fim da praia, que geme com preguiça sob seus pés descalços. Tonico o acompanha paciente. João queria ser jogador de futebol. Está muito, muito mais cansado.