Ponte para o Nada

Manhã invernal. Chuva rala e um frio insistente encobre a cidade. Pior, ainda, para quem como Honorato tem na rua seu habitat e o vão das pontes do Arroio fétido como morada.

Ele acorda cedo, quando o sol ainda não aponta no horizonte. O trânsito mais pesado já se inicia e o barulho não o deixa dormir.

Honorato junta-se aos outros companheiros, habitantes da mesma miséria. Logo, começa a abordagem dos carros, das panificadoras e das pessoas, à busca de pão, moedas, agasalho, qualquer coisa para se a placar a fome e a tristeza.

Desde a semana passada, há um comentário entre os mendigos de que os vãos das várias pontes da avenida serão fechados e eles convidados a se retirarem. Dizem que a Prefeitura promete abrigos, reeducação, uma reforma de costumes.

Assim falou Dílson, um líder entre os deserdados. Ele pretende resistir, enfrentando homens e máquinas.

- Honorato, te prepara, a empleiteira começa a trabaiá esta semana...

- Como, tu sabe?

- O dono do mercadinho me mostrou no jornal.

- Desde quando tu sabe lê?

- Aprendi com a vida, seu babaca...

Um ruído mais forte interrompe o diálogo. Máquinas, luzes e flashes fazem uma festiva fila junto ao vão da ponte. O Secretário de Obras convocou à Imprensa para noticiar o início das atividades de fechamento do espaço entre as pontes.

Ele está sorridente e mostra a condição insalubre das estruturas, aponta os moradores enregelados. Fala que isso tudo vai mudar. Em uma linguagem técnica se refere ao projeto de inclusão social, das demandas ecológicas cumpridas, do reassentamento fundiário e outras pérolas do politiquês

E a deixa para os fotógrafos invadirem o local, espantando alguns ratos mais curiosos. Honorato e seus companheiros são fotografados, entrevistas são feitas. Dílson fica a um canto, com um semblante contrariado.

De súbito, Dílson baixa a cabeça e, como animal furioso, se arremessa em direção ao Secretário de Obras. Vendo a possibilidade de ser atingido por uma cabeçada, o Secretário, milagrosamente, se esquiva e Dílson mergulha no arroio poluído e transbordante.

- Socorro, chamem a SAMU, a Polícia, o homem caiu no arroio!

Logo, aparecem os Bombeiros, a Polícia e a ambulância para dar assistência. Tarde demais, nada mais pode ser feito. Dílson reaparece boiando e mortalmente ferido.

No outro dia, como se nada tivesse ocorrido, o vão das pontes começa a ser concretado...