Quintais do Brasil
Quintais do Brasil
Quando menina, era costume o visitar-se, no Brasil. E eu ia com minha mãe nas tardes de café com leite à casa da tia Naiá em Sorocaba. Ela me olhava com delicadeza e dizia vai, vai lá no quintal que tem patinho que nasceu, vai ver e eu sentia o cheiro meio adocicado de cocô de galinha e de pato. Os patinhos eram mesmo tão amarelinhos e aflitos sempre correndo atrás da mãe até uma certa idade, depois passa. Tia Naiá pintava o cabelo de preto numa época em que isso não era o costume, a pele branca sobressaia por demais no emaranhado de cachos tão escuros, não me lembro se ela arrumava o cabelo em coque ou se era colocado para cima e preso com grampos, o nariz era fino e os olhos generosos, sorriso pequeno e simpático. E quando você entrava na casa dela, retornava a um passado que não se conhecia, imaginava eu poder ver senhores de cartola e polainas, olhares e vozes graves que diriam: -Vosmecê me traga uma chávena de chá, sim nhonhô, responderia uma mucama de olhar esperto e de turbante na cabeça; decidiriam, então, sobre o número de escravos a comprar, que filha casar, que presidente do Brasil eleger, esse pormenor até que não mudou muito. Enquanto isso, as mulheres conversariam baixinho nas alcovas, faces anêmicas e almas em fogo brando, bordariam caladas ou obrigariam as escravas a lhes trazer brasas nas mãos para que acendessem o fogo; nesse passado da madrinha Naiá, havia enormes trepadeiras de samambaias sobre suportes de madeira bem altos, chapeleiras circunspectas, toalhas de crochê, sofás de veludo brocado, um piano onde a filha Carminha tocava. Carminha falava baixinho e era muito, muito gentil. E eu gostava de tomar lanche com eles, eis que no meio da refeição chegava tio Nogueira que tinha um avental branco e era biólogo. Mais tarde eu soube que a mãe da tia Naiá criou minha avó. A família de minha avó se desintegrou quando a mãe morreu, fez assim, puf, puf, e todos foram dados a padrinhos, madrinhas ou benfeitores. Muito esquisito isso, muito esquisito ficar repartindo filhos por aí. Como ninguém me informou muito bem sobre esse assunto acredito que o viúvo tenha sido incapaz de prover o sustento dos filhos. Sei que, mais tarde, também minha avó, que com vinte e cinco anos era considerada, já, uma solteirona, foi apresentada a um viúvo e se casou com ele. Do primeiro casamento desse senhor Augusto vieram duas meninas e o casal ainda teve mais três filhos. É uma pena que, acredito eu, somente a partir dos cinco anos você comece a se lembrar de seus avós. O vovô Augusto eu não conheci, as irmãs mais velhas diziam que ele era moreno e alto, um tipo acaboclado sossegado e bom, sei que chamava os homens de vosmecê, acho muito romântico esse tratamento, fazia parte dessa outra época. Morreu cedo esse avô. Mas de minha avó Malvina eu me lembro; era como uma sombra necessária em nossas vidas, dessas árvores onde se senta no chão sob seus galhos e ela fica ali, confortando, sem falar muito, sem ventos fortes, só uma brisa passa vez em quando para acarinhar seu rosto; Era tão quieta essa minha avó Malvina, ia fazendo as coisas e quando menos se esperava já estava tudo pronto e os irmãos podiam brincar na rua à sombra de seu olhar protetor. Era magra essa minha avó, comia pouco e no seu fim de vida muitas vezes eu a vi passar a mão sobre o lado direito do corpo; também se queixava pouco essa avó Malvina, somente uma leve contração de seu rosto e um meio sorriso aflito indicava que havia alguma dor. Do que minha mãe contava sobre ela soube que foi criada por essa família de Sorocaba, os Fleury; desse nome guardo as mais belas recordações da infância nos livros infantis que coloriram minha vida. Lembro-me da mãe da madrinha Naiá, esse – madrinha - ficou sendo um primeiro nome, até hoje não sei quem era o afilhado dela, e essa mãe da madrinha Naiá se chamava vovó Teresinha e quando a gente ia visitá-los ela resmungava do quarto, xiiii, já chegaram é e eu ficava sem saber o que responder ao mau humor de uma velhice confinada num quarto escuro, onde deveria haver um pinico de flores e uma escarradeira combinando, os dois embaixo da cama, à espreita. Vovó Terezinha usava uma bata branca e uma saia comprida disso eu me lembro e o cabelo era todo penteado para cima. Tinha um ar majestoso, parecia-me muito alta e desagradável um olhar distanciado e pouco amistoso. Nessa hora a madrinha intervinha com delicadeza, não liga não, filhinha, não liga pra o que ela diz. Nessa lembrança de adjetivos antes do nome havia também um - tio Genésio - que balançava o pé sem parar por ou nervosismo ou ansiedade, até hoje quando alguém balança a perna na família lá vem o comentário ”Genésio tá animado, hein”. Desse chamado tio me lembro vagamente sei que parecia um personagem de livros antigos, meio coelho da Alice no país das maravilhas, usaria colete, teria um bigode, seria magro e dissertaria sobre vários assuntos inclusive sobre o valor do abacate nas refeições com certa arrogância inócua, tomaria café em goles apressados, provavelmente teria uma úlcera mal elaborada. Junto com a lembrança de minha avó vejo os terços; de várias cores, alguns de sementinha, outros de contas brilhantes, alguns com contas leitosas outros ainda com pequenas relíquias da terra santa, poderia ser um pedaço de alguma túnica. E ela os carregava em silencio e rezava baixinho movendo a boca quase que imperceptivelmente, ventríloquo da fé. Rezou por todos, todos, os filhos os netos, os que morreram, os que estavam vivos, inclusive para meu pai, de quem tinha tanto receio. Hoje penso que, todos já falecidos, devem estar conversando sobre o que foi feito e dito sem pensar, e se abraçam com amor que não se mede aqui na terra. Coisas que a fé de minha avó me deixou como relíquia. Em algum lugar comentei como ela cozinhava bem, como contava histórias da Carochinha; importante contar histórias para crianças que precisam buscar suas formas de sonhos. Eu me lembro especialmente da moura torta onde uma bruxa, ao ver sua face espelhada num rio não se apercebeu da linda moça em cima na árvore. Pensando ser sua a imagem da linda criatura, jogava a bilha que trazia equilibrada na cabeça e gritava uma moça tão linda como eu com esse tacho na cabeça e plaft quebrava o tal tacho. Estranho que mais tarde eu tenha me lembrado tantas vezes dessa história; quem sabe, não foi porque quebrei tantos tachos ao ver minha imagem distorcida no rio da vida. Eu não era como a vovó. Ela sempre me pareceu resignada com os parcos presentes que recebeu do acaso, recebeu muitas pessoas em sua casa simples e pobre. Seria costume, na época de minha avó, acolher pessoas que ficavam sem lar ou cuja família morreu ou se desfez? No caso de meus avós, isso parece ter sido uma constante em suas vidas; nem acredito que ela achasse que deveria receber algum presente da vida, simplesmente a acolheu com respeito e dignidade, coragem mansa que deslizava como uma mão sob a água. Deveria ser romântica; seguia os rádio-teatro com interesse sorria discretamente quando o casal se abraçava num reencontro final. Minha avó Malvina gostava de plantas e quando fomos morar no interior imaginei que ela pudesse plantar muitas flores naquele jardim tão grande, mas, já a morte a espreitava, e nem tão idosa para os padrões atuais, seu organismo delicado não suportou muito tempo o câncer devastador. Eu a via através de minha meninice egocêntrica, levada de lá para cá por minha irmã Marli e minha mãe para tomar banho e ir ao banheiro, tão magra e sofrida, sem reclamar ou gritar, numa noite foi levada embora com todos os netos e minha mãe ao seu redor. Contar esta história dos quintais do Brasil, já na maturidade, traz um pouco a figura de minha avó, tão querida, alegra meu coração e, espero, o de Vosmecês.