Igor da Barra Funda

Igor da Barra Funda

O Igor não tem nada a ver com o príncipe Igor - cavalgando pelas estepes com seu cavalo de penacho azul enquanto o vento corria junto, sorrindo - O Igor de quem falo agora, é muito pequeno, ainda. Está deitado placidamente no colo da mãe. Pálido esse Igor,não tem especial interesse em nada,vez em quando alcança um fantasma e estica o dedinho,dá, dá. A mãe responde complacente, bonito né filho, me olha suspeitosa quando tento alcançar a mãozinha gorda. Mas Igor não responde ao meu interesse e mastiga devagar a chupeta vermelha que lhe dá um ar de palhaço descambado. Não, não, ela não conhece nenhum príncipe Igor, preferia Jefferson, o pai que quis o nome Igor pra criança, era amigo de um Igor que viera num navio russo, encostou-se na parede do Brasil, não houve meio de o fazer voltar. Conta isso com olhar ainda ressentido e a conversa sai como saca-rolha. Desisto. Desisto de ser simpática, de achar O Igor belezinha quando é feio e pálido, viro o rosto para a janela do ônibus. Estação da Luz. O nome do ônibus. Nos meus cinco anos, a Estação da Luz era mesmo tão cheia de luz, lembro-me de minha tia que foi nos esperar, eu e vovó, eu era muito pequena a estação parecia um salão de baile e havia gente de chapéu, viajante e caixeiros-viajantes. Vida de caixeiro viajante deve ser muito solitária, prá lá e prá cá, levando uma mala surrada, vendendo artigos de armarinho, enxovais com panos de prato onde a mulher tem um chapéu aplicado, você não vê o rosto dela, está de perfil, o avental também é aplicado, era bom quando você guardava as peças e pensava numa casa bem limpa, com flores e lareira, se ficasse muito frio. O Estação da Luz continua seu caminho, resfolegando pelas ruas estreitas do Bom Retiro. É triste esse bairro. Fica perto da Barra Funda. Que também é um bairro sem muita beleza. Mas gosto de olhar as casas dos anos vinte, dos anos trinta, seus enfeites de gesso, um leão com a boca aberta, rosas entrelaçadas, moças com flores na cabeça, seus corredores compridos e suas clarabóias onde se podia ver o sol, seus linóleos de arabescos, suas moças na janela. Hoje está decadente. As moças na janela ficaram velhas e fingem que estão vendo. Rabiscos sujam as casas assustadas e espremidas entre os néons que piscam aflitos. Miu-Miu modas, Jeans Kaplan, Romance tecidos, A Gorda Feliz, tamanhos de 46 à 52. Ninguém pode ser feliz vestindo tamanho 52, ou pode? Balconistas sobem no ônibus apressadas e falando alto, funcionários fecham as portas de ferro e os manequins de gesso ficam sozinhos e nus. Um cheiro acre se espalha pela tarde friorenta quando o homem de avental vira o churrasco sobre o tripé, na calçada. No bar, por onde o ônibus passa ao virar a esquina, um mendigo dança ao som de uma valsa imaginária, um cachorro come um resto de mortadela, o peão da cidade palita os dentes, a moça puxa para baixo a saia apertada demais, curta demais, triste demais. Um gato olha a chuva fina, as andorinhas equilibram-se nos fios molhados e conversam um pouco, uma barata esbaforida corre para dentro de um bueiro, alguém assobia, alguém empurra, alguém se esconde do frio, alguém espera. Um rapaz pálido contorce-se sob a catraca do ônibus e recita em voz plana, que é pobre mas não é ladrão, está desempregado há seis meses, tem família para sustentar, oferece drops em três sabores, hortelã, cereja e morango por um real, aceita passe. Alguns remexem contrafeitos nos porta-níqueis, a maioria finge não ver. Muito desemprego. A esperança desce sorrateira e quase cai na calçada. O cobrador ouve a ladainha do rapaz com certo descaso. Pensa nas catracas eletrônicas e esbraveja, chega ó meu, desce, o casal de japonês troca conversa de arroz, o ônibus segue roncando pela noite escura e os faróis iluminam as calçadas sozinhas. A mãe de Igor o embrulha com cuidado ritualístico e desce no próximo ponto. Igor some na escuridão. A Estação da Luz se apaga.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 19/09/2012
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