Velha esperança

VELHA ESPERANÇA

Três anjos apareceram às dez da noite; enquanto isso, ajeitava os cabelos e o vento destrambelhado puxava a parte de trás para frente, ficava parecendo o pica-pau do desenho animado. A mãe dizia, olha a carequinha; achava feio mencionar esse termo para mulher, antipático, meio humilhante que mulher nunca poderia ser carequinha, a obrigação era de se ter cabelos abundantes, melenas, gostava da palavra melenas, madeixas, palavras muito antigas, por certo; mas cabelo abundante, daqueles que a gente prende para cima e sobra uma montão dos lados fazendo cachos, esse tipo, nunca teve. As cabeleireiras comentavam que pouquinho né, passa babosa, tutano, arnica, cocô de vaca adormecida, asa de morcego, pé de coruja, que cresce; bem que tentou de tudo, continuava fininho, meio crespo, até que não fazia má figura; combinavam com os olhos grandes e a boca em forma de coração, beleza meio antiga, nem era alta e magra parecia mais antiga, ainda. No meio dessa prosa, alguém disse que iria lhe enviar três anjos, às dez da noite, Gabriel, Miguel e Rafael para que conversasse com eles e pedisse algo de muito urgente. Gabriel das causas impossíveis, Rafael protetor da saúde, Miguel do trabalho e do dinheiro. Pedir, só se for para coisas justas, que anjo não fica entrando às dez da noite na casa dos outros para atender solicitações fora de propósito como poder comprar aquela bolsinha da Louis Vuitton ou trocar de Mercedes, comprar o conjuntozinho básico na Daslu. Nem pensar. O que os anjos nos podem dar, tem a ver com as coisas do céu, lembrou-se dos anjos quando foi, pela manhã, fazer exame de sangue. Tinha a ver com a prolactina alterada que é um hormônio das gestantes, ou das jovenzinhas, lhe disse o médico sorrindo, olha que é até bom, você é jovem também. Não achou nenhuma graça, muito menos quando ele informou que, se fosse um cisto na tireóide, teria que fazer uma cirurgia pela boca, coisa simples, melhor mesmo era falar com o endocrinologista. Fora ao médico num ímpeto de boa vontade, depois de olhar com inveja calma a foto da popozuda, e da top model, onde será que punham a gula, agora saia sem emagrecer e com problema de hormônio, elaborando prolactina com um filho de quase trinta anos sem nenhuma necessidade de leite. Ridículo. No laboratório puxa conversa com a atendente, quem sabe se assim ela espeta a agulha na veia com delicadeza não fica com aquele ar de paisagem,: - A bolsa a senhora coloca atrás da porta, pode sentar-se, arregace as mangas, feche a mão, relaxe: - Está com frio, a que horas se levanta pela manhã? A atendente sorri com superioridade que não é pela manhã, é de madrugada, pelas quatro, tem outro emprego, trabalha até as seis, chega em casa às nove da noite, ainda vai tomar banho e comer alguma coisa, duro mesmo é levantar, quando consegue e vai pra baixo do chuveiro, é outra pessoa, já fica esperta; o marido já se cansou dessa situação e ela vai tentar entrar em acordo com o laboratório. Pensa nos três anjos convidados que estão na sua casa e oferece a entrada deles na casa da atendente de nome Aparecida; tem que abrir a porta às dez da noite e conversar com eles, pedindo algo de que se necessite muito. No dia seguinte, no mesmo horário, abrir novamente a porta e enviar os três anjos à quem estiver com problemas que é o que não falta no Brasil, pensava, esses anjos iriam ficar um tempão em terras brasileiras: - Pelo amor de Deus será possível que nunca mais vamos ver neve ou voar sobre Roma, vamo te que ficá aqui pra sempre, pessoal mais carente que esse nunca vi,, olha que tô até falando que nem o pessoal do interior, Vige Maria, alguém me tire daquii, dá sossego ô meu !!! A atendente a olha com franca surpresa e agradece muito, ela repete enfática, não esqueça de deixar a porta aberta às dez horas da noite que é pra eles entrarem. Como causa impossível de ser realizada, pediu ao anjo um bom companheiro que já estava cansada de ficar só. Gostaria de ter vivido junto com um companheiro trinta, quarenta, cinqüenta anos, meio que brigando, meio que sorrindo, meio que aceitando, meio que entendendo. Mas aí, escolheu mal o marido. Meio que escolhia, meio que dançava, meio que sonhava, meio que não via, meio que sorria e seduzia, só pelo calor do sol. Mais tarde foi feliz. Era um companheiro quietarrão mas que olhava as coisas com paciência. Só nos sonhos ainda sentia a sensação antiga de desamparo na praça tão grande e vazia, o senhor saberia dizer onde existe um táxi, ninguém sabia, o céu era tão imenso, fazia frio, não havia ninguém; ou casas vazias os moveis cobertos de pano branco, sempre as casas, espaços ou estradas lamacentas. Uma vez sonhou com uma estrada branca, brilhando ao luar, ao longe, as luzes de uma cidade. Ou que estava chegando em Roma com suas luzes amareladas de exibir monumentos. Sonhava que o dinheiro era pouco, meio aflita, meio feliz na cidade de tanta luz, iria passear e olhar as casas vermelhas de Roma. Mais tarde o companheiro se afastou. Envelheceu, veio à tona uma parte mesquinha que ficara escondida sob o vigor. Assim mesmo, ficaram amigos, amizade fugidia, dessas que somente concorda que é pra sopa não esfriar. Sentia falta de andar de mão dada, coisa boba, iriam dizer, mas já tinha visto tantos casais de mão dada, era bonito, apagava o desamparo, juntava as almas. O vento não estava ajudando muito naquela tarde. Andava rápido ao som da música do Ipad e, vez em quando, meneava a cabeça ao som da melodia, ele passava ao contrário, era forte e estava de óculos escuros. Sabia que ele a olhava. Passados dias, cumprimentara-a Pela manhã, demorava-se no espelho, se a boca não estava muito pintada, afinal era cedo ainda, então melhor é trocar o vermelho forte por um mais clarinho, mais esportivo, batom esportivo, tem graça, nos olhos só um traço discreto. E quando ele passava por ela, sentia um calor antigo, uma emoção antiga, uma alegria antiga, muito antiga, aquela de outra praça, de outro andar de mãos dadas, da alegria de ser tão admirada na rua, tão solicitada, nunca entendeu porque escolheu tão mal, a avó dizia que quem muito escolhe acaba escolhida, o baile nunca iria acabar não é vó?! Quem sabe não deveria ter escolhido o moço que lhe trouxe o livro da coleção rosa para mocas, era tão menina ainda, a avó sorria discreta enquanto ela pulava corda, não entendera o porquê do presente. Mais tarde descobriu a alegria de ser admirada porque era bela. Contentava-se agora com o olhar atrás dos óculos escuros, que a vida foi ficando míope... Um dia, ele desapareceu da praça. Pensava se não estaria viajando, ou se ela havia olhado com insistência, mulher chata, agora a gente nem pode fazer cooper sossegado que essa mulherada dá logo em cima, sabe que é um exagero seu pensamento, na verdade não sabe o que aconteceu, sabe só que o flerte não era tão importante assim. A prolactina se transformou num exame de ressonância magnética e num choro convulsivo que o seu cachorrinho não entendeu. Pensou em ser forte como as heroínas de filmes do puritanismo americano, ela foi tão forte e corajosa, nunca falou sobre a doença, agüentou até o fim. O cachorrinho quer brincar e não entende seu choro, também não é igual aos livros, onde o cão chora ao lado do morto, lembra-se que não está morta, parece que entrou em tumulto mental. Raciocina com calma o que deve ser feito no caso de câncer, não vai, de jeito nenhum, submeter-se a terapias paliativas, quer morrer sossegada, deve avisar o filho sobre morfina até a inconsciência total. Pronto, está decidida, seca as lágrimas e faz um capuccino, estranha a fome, será que a doença dá fome, lembrava-se do pai que não tinha apetite, vamos pai, você gostava tanto desse queijo, não comia, foi levado para o psiquiatra. Seria anorexia nervosa, sempre foi tão bom de garfo, mais tarde verifica que essa disfunção é comum em adolescentes e que o pai tornara-se estranhamente paciente com tantas idas ao médico, até que um dia avisou aos filhos que esta é a última vez que venho a um médico, daqui pra frente quero ficar em paz; não fala em morte; avisou uma vez e ninguém acreditou, que dia sem sentido, dia sem calendário, meio como a história do menino que dizia sempre estou me afogando, estou me afogando, até que um dia, ninguém acreditou no que berrava e ele morreu afogado. O médico a olha rindo, pois que não era câncer, uma disfunção da tireóide que deveria ser tratada com remédio, não se usava mais cirurgia para esses casos. Gostaria de sentir-se revivendo outra vez, a alegria de se sentir viva com dignidade. Recosta-se na cadeira meio cansada, meio assustada, meio feliz., pensa no homem da praça, será que o veria outra vez; ai, essa velha esperança hein?

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 18/09/2012
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