A Rosa do Sertão
 
 
A paisagem seria bonita, não fosse tão seca. O céu era de um azul profundo, límpido, total. O azul mais azul do mundo. Contrastava com o vermelho do chão coalhado de rachaduras, e o mato seco e morto que deixava tudo ainda mais desolado.
Mariinha, seis anos, morava com a família – mãe, pai, cinco irmãozinhos – em um casebre de dois cômodos. Menina magrinha, de cabelos loiros tão ressecados quanto palha fina prestes a pegar fogo ao sol escaldante. Rosto sempre sujinho, pés descalços como seus cinco irmãozinhos. Tinha dois vestidos: um inteiro, de ir à missa na vila, e outro com a manga rasgada – ficara presa em um espinho de mandacaru – que usava para ir à escola. Em casa, Mariinha andava quase nua, vestindo apenas uma calcinha feita pela mãe, de saco de estopa.
O pai trabalhava na horta... isto é, quando Deus mandava chuva. Naqueles últimos dois anos, Deus andava um tanto econômico com a água, e a plantação de feijão e mandioca, há muito, morrera. Só havia um poço de água cada vez mais barrenta, há alguns quilômetros da casa onde Mariinha vivia com sua família. Eles iam até lá três vezes por semana, cada um carregando uma vasilha para encher d’água. As vasilhas sempre chegavam com água pela metade, que as crianças deixavam entornar ou que o sol fazia evaporar.
Mariinha e seus irmãos iam à escola. Não iam todos os dias, pois às vezes, o sol estava tão escaldante, que ficavam com preguiça de andar pela estrada barrenta. Mesmo de manhãzinha, o calor já envolvia a todos com seus dedos quentes e pegajosos. Na escola, eles às vezes merendavam: um copo de café com leite fraquinho, um pedaço de pão, ou um prato de sopa.
Tia Marinalva – a professora – fazia o que podia. Tinha vindo da cidade grande para ensinar as crianças. Mariinha simplesmente a adorava! Queria ser professora, como ela.
Sonhava com o dia em que ela estaria de pé na frente da sala de aula, escrevendo no quadro com o giz. E todas as crianças prestariam atenção ao que ela dizia, e seus pais diriam, com orgulho, que tinham uma filha que era professora.
Na sala de aula, Tia Marinalva tinha uma roseirinha plantada em um vaso. Todos os dias, ela punha um cadinho d’água, um tiquinho de nada, o suficiente para que a mirrada roseira crescesse um pouquinho só. Ela mostrava às crianças, dizendo:
-Vejam, meus pequenos: a gente deve ter sempre fé na vida, e mesmo que a fé da gente seja um tiquinho, como esse golinho de água que eu uso para molhar a roseira todos os dias, um dia Deus ajuda, e a roseira da vida floresce. Não se esqueçam disso!
As crianças ouviam com atenção, os olhos esbugalhados de curiosidade e fome.
Mas um dia, Tia Marinalva foi transferida para uma outra escola, bem longe dali. Todos ficaram muito tristes, mas nada podiam fazer. Antes de ir embora, ela ergueu com a mão o rosto de Mariinha (sua preferida) e entregou-lhe o vasinho com a roseira, dizendo:
-Cuide dela para mim, pois quem sabe, um dia eu volto?...
Lágrimas sujas escorriam pelo rosto da menina.
E Mariinha levou a roseira para casa, carregando-a com dificuldades pelo caminho, sob o sol escaldante do meio-dia. As lágrimas deixavam a paisagem ainda mais baça.
A mãe e o pai conversavam no alpendre. Diziam que a seca não acabava nunca. Reclamavam, cismando sobre como alimentariam as crianças no dia seguinte, já que a comida – um pouco de farinha e melaço – só daria para mais aquele dia. O pai resolveu ir à cidade, ver se conseguia alguma coisa. Voltou ao cair da tarde, trazendo algumas batatas, que comeriam no dia seguinte.
Conseguir água estava ainda mais difícil, já que o poço mais próximo finalmente secara. Tinham que andar pelo menos quatro horas de ida e volta até o próximo vilarejo.
Um dia, a mãe viu quando Mariinha bebeu da metade de sua caneca d’água, jogando a outra metade no vaso da roseira. Imediatamente, a mãe ralhou com ela:
-Ô menina abestada, jogando água fora? Num sabe o trabaio que dá pra carregá? De hoje em diante, nada de jogar água na terra!
-Mas mãe, é a roseira que a tia Marinalva pediu pra cuidar! Ela disse que a roseira é para ter esperança...
-Que roseira que nada! A gente num pode cuidá nem da gente mesmo, ainda inventa de cuidá de roseira... eu proíbo de jogar uma gota que for nesse vaso! Esperança... que esperança que se tem nesse fim de mundo, minina?
Dizendo isso, a mãe pegou o vaso, jogando-o pela janela. A terra ressecada caiu no chão. Mariinha chorou durante muito tempo, mas à noite, quando todos dormiam, ela foi lá para fora e recolheu tudo no vasinho de novo. Só a lua viu.
Escondeu a roseira atrás do tanque seco, onde ninguém nunca ia. E todos os dias, ela ia lá, escondidinha, levar um pouquinho de água para a roseira.
Mas Deus decidiu que a roseira não precisava de cuidados, pois levou embora Mariinha. Os pais a enterraram em uma cova rasa, atrás do casebre. Não teve padre, nem missa; apenas o choro dos pais e dos irmãos, que amedrontados, olhavam fixamente, enquanto o rosto de Mariinha sumia sob as pás de terra.
Mas o tempo passou, e veio a chuva. E veio forte. Aos poucos, o solo rachado foi sendo consertado pelas correntezas de água. A paisagem voltou a ser verde, e o Mandacaru floriu. Certo dia, a mãe foi até o velho tanque lavar a pouca roupa, enquanto o pai replantava algumas sementes de feijão. Foi então que ela viu, com os olhos cheios d’água, uma mancha vermelha.

Era a roseira da esperança.

Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 17/09/2012
Reeditado em 31/07/2015
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