AS REGRAS DAS MULHERES: DIFRAÇÃO DO COMPORTAMENTO
Difração do comportamento até ao incontornável
Poucas pessoas conheceram o comportamento da D. Clotilde - nome falso porque a história, essa, é verdadeira. Poucas mas más. Uma delas constituiu mesmo um obstáculo intransponível por esse seu comportamento dado que até à sua intervenção, a atuação da D. Clotilde gozou da mesma propriedade das ondas do mar, das ondas sonoras ou das eletromagnéticas: a de contornar obstáculos até que um as destrua; o que indicia evidentemente características ondulatórias.
Vivia a senhora referida, em finais dos anos 60 ou início dos 70 numa casa que fazia esquina com a mesma avenida que a minha – em rigor a de meus pais – e era separada da minha por uma rua que cruzava a dita avenida. Dos jardins de uma via-se muito bem o da outra, como também se via da minha o interior da marquise da da D. Clotilde. Jardim e marquise eram as duas zonas em que frequentemente se podia observar a senhora, o marido, o Sr. Ramos – que o meu pai sabia ter um negócio de móveis de escritório por lhe ter comprado vários quando se estabelecera – a tomar chá ou uma bebida de fim de tarde, na quase totalidade das vezes acompanhados de um outro cavalheiro, visita assídua do casal. Faziam um trio de sexagenários serenos, discretamente bem vestidos, constituindo o que toda a gente considerava um ménage à trois pacífico, sedimentado pelo tempo e pela boa educação dos constituintes.
Um dia, sem quaisquer indícios prévios ou póstumos, deixaram pura e simplesmente de ser vistos e a casa ficou abandonada sem que qualquer movimento de mudanças tenha sido observado.
Uns meses depois disso, durante um jantar partilhado com algumas amizades dos meus pais, alguém fez referência ao desaparecimento interrogando-se sobre se o ménage à trois continuaria noutras paragens. Uma das convidadas, senhora muito dentro das vidas menos ortodoxas da pacata burguesia desta antiga, mui nobre, invicta e sempre leal cidade do Porto saiu-se com esta bombástica frase: - “Não era um ménage à trois”. Atrevi-me a provocar: -“Toda a gente o dizia mas afinal seria uma sincera amizade platónica que unia aquele trio”.
“O que aconteceu foi que no casamento da Clotilde que casou virgem como era de bom tom em 40 ou antes, a noite de núpcias correu tão mal que no dia seguinte tiveram que chamar um médico. O médico, que estava na altura na moda e tinha extensa clínica na cidade, observou-a longamente e comunicou depois a ela e ao marido que ela tinha uma malformação congénita, que não lhe permitiria relações normais” – disse a mesma senhora. Curioso, inquiri: - “E não havia correção cirúrgica? Ele não se quis separar” “Não sei mas é bom lembrar que naquela altura não havia divórcio, as separações eram muito mal vistas e todas as cirurgias eram perigosas; eram os cirurgiões que operavam com a roupa que tinham no corpo, nas casas de saúde ou em casa do paciente, e um ajudante qualquer que anestesiava sob indicação do cirurgião. Morria-se mais da cura que da doença. Só em 48 é que um rapaz do meu tempo, o Pedro, fundou no Hospital de Santo António o primeiro serviço de anestesia do país, com um bloco operatório e a adequada assepsia.” “E o Sr. Ramos?” perguntei. “Conformou-se! Há quem diga que se arranjava em Lisboa onde ia muitas vezes por ser lá a sede da empresa comercial de que era dono mas se era assim era muito discreto porque nunca constou nada. Ficou foi muito amigo do médico que passou a ser não só amigo como visita da casa”. “Então sempre era tudo platónico …” insisti. “Também não! – retorquiu a senhora – Há perto de um ano o Ramos recebeu uma carta anónima a dizer que sempre que ele ia a Lisboa o médico ia dormir com a mulher; um dia disse que ia lá mas voltou à noite e apanhou-os em flagrante. E separaram-se”. Calculei que o abandono da casa pelos habitantes e pela visita habitual se tenha processado nessa mesma trágica noite e que posteriores mudanças teriam ocorrido também à luz da lua para ninguém ter visto nada. Ainda perguntei se o médico tinha ficado com a D. Clotilde e que mais tinha feito o Sr. Ramos mas só fomos informados de que o médico tinha morrido uma semana ou duas depois, a D. Clotilde tinha ido para casa de uma tia em Viseu e o Ramos para Lisboa. Especulou-se muito sobre quem soubera ou tinha vindo a saber da “ignorância” do Sr. Ramos e ou do problema da noite de núpcias e da maldade com que tinha estragado, ao fim de trinta anos ou mais, a vida a três pessoas que podiam não ser felizes nem ter uma relação fácil mas mantinham pelo menos uma vida serena e equilibrada. Também fiquei perplexo com o tipo de escolhos que teriam levado a D. Clotilde a contorná-los com aquele original procedimento. Mas dessas questões nada sabia a nossa amiga; também não sabia se a ligação entre o médico e a Clotilde se tinha estabelecido na consulta para que foi chamado, se já existiria antes ou se concretizou posteriormente. Dezenas de perguntas que me atravessaram o cérebro ficaram e ainda estão por responder. E outros trinta anos se passaram até ter sabido mais alguma coisa do Sr. Ramos, do seu passado e do seu destino. Desta vez relacionado com os negócios dele … e dos meus e não com o que quer que tenha presenciado.
Quando decidi, no virar do século, ampliar e remodelar os escritórios da empresa do meu pai a quem tinha sucedido após o seu falecimento, os competentes serviços consultaram, entre outros fornecedores, a firma do Sr. Ramos que constava dos ficheiros como anterior fornecedora desse mobiliário. Na ocasião nem sequer me apercebi disso. Mas no dia em que o meu chefe de compras me disse que um senhor Guimarães, atual dono da mesma firma que nos tinha fornecido os primeiros móveis nos viria visitar para discutir melhor os pormenores da nossa consulta que era suficientemente interessante para merecer visita do dono da empresa potencial fornecedora, toda a história que contei me veio à memória. Disse que o receberia pessoalmente e assim foi. Antes mesmo que o Sr. Guimarães começasse a falar da potencial transação perguntei-lhe como tinha passado para ele a propriedade da empresa, se já era anteriormente sócio do Sr. Ramos e como ia ele, já que pelas minhas contas devia estar em idade bem avançada.
- “O Sr. Ramos morreu … há muito. Sou agora dono da firma porque ele, oficialmente vendeu-ma… isto é … essa é uma longa história. Mas desculpe … conheceu pessoalmente o Sr. Ramos?
- “O meu pai sim, conhecia-o, eu não, mas ele viveu uns anos numa casa em frente à minha e do meu pai e eu sabia quem ele era. Via-o quase todos os dias, quer dizer, quando ele estava no Porto … ele ia muito a Lisboa … mas vendeu-lhe a firma, oficialmente quer dizer o quê, que a herdou, que…? Era parente dele?
- “Se era parente dele … na verdade não sei! E a firma … em rigor … deu-ma. Houve perguntas que nunca me atrevi a fazer-lhe para não o incomodar. Achei que a minha curiosidade e alguma inquietação por não ter as respostas se iriam esbater com o tempo mas não tem sido assim. Quanto mais velho estou mais inquieto fico, não sei porquê, mas por isso ficar-lhe-ei muito grato por tudo o que do Sr. Ramos me possa contar. É a primeira pessoa que conheço que alguma coisa saberá dele … fora as do meu escritório e essas para esse efeito não contam por razões que creio que entenderá.”
- “Uma vez que o senhor morreu não o poderá incomodar que lhe conte o que sei, ou julgo saber. A credibilidade do que lhe vou dizer pode avaliá-la como quiser. Como perceberá, o que eu vi é muito pouco e do que ouvi já não há testemunhas vivas”.
E contei-lhe a história do trio Clotilde – Ramos – médico. Ele ouviu-a com os olhos tão arregalados que parecia que queria ler as palavras no meu cérebro antes de eu as pronunciar. Depois os olhos toldaram-se-lhe e ficou cabisbaixo e um momento em silêncio. Muito baixinho, como se falasse com ele próprio, disse, sem levantar a cabeça: - “Obrigado. Pobre homem! Não me mentiu na única coisa em que eu achei que ele mentia para se justificar.”
Não percebi o que queria dizer e fiz-lho saber. Ele recuperou do ensimesmamento e num tom de voz já normal convidou:
- “ Dar-me-ia muito prazer se viesse almoçar comigo. E se tiver paciência e tempo disponível explico-lhe o que quis dizer. Mas para isso tenho de lhe contar a minha história, pelo menos a parte em que se relaciona com o Ramos … e a bem dizer relaciona-se toda … nunca a contei a ninguém … e agora que o ouvi a vontade de a contar aumentou … talvez por pressentir que será um bom ouvinte … quem sabe se me ajudará a encontrar algumas respostas a perguntas que não fiz senão a mim …”
- “Aceito com gosto. Pode crer que gostarei de o ouvir. Um amigo meu diz muitas vezes e até já escreveu um livro com esse título, que «A curiosidade é o meu único infinito». No meu caso não é o único mas é sem dúvida um deles. Vamos onde quiser.»
A conversa de negócios mesmo antes de começar deixara de nos preocupar tanto a um como a outro. No meu subconsciente, com esta introdução o Sr. Guimarães já tinha ganho a encomenda mesmo que não se interessasse por ela. Almoçámos numa marisqueira de Matosinhos e só nos levantámos quando estavam a chegar os primeiros clientes para jantar. O Sr. Guimarães contou toda a sua história. Começou assim:
- “O senhor Ramos pode muito bem ter sido o meu pai…