ATALUM
Eu e Fred crescemos juntos
Da creche ao vestibular
Ininterruptamente bons amigos
Mas o Fred foi meter a pica na Laura
Essa mulata mudou nossas vidas
Suas curvas
Seus lábios
Acabaram comigo
Conheci a Laura na quadra da Mangueira
Lembro dela sambando de shortinho branco
Apaixonei-me na hora
E o Fred veio dizer estar comendo
Tava de sacanagem
Fred passava o rodo
Eu não
Numa bebedeira pedi-lhe para deixar-me a Laura
Tampamos na porrada
Brigamos como cão e gato
Parceiros, não mesmo.
Paramos de nos falar
Algumas semanas passaram
Comecei a ver Laura
Perguntei por Fred
Disse ser um cachorro
Caímos na gargalhada
Depois estávamos namorando
Fomos morar juntos
Na comunidade ninguém sabia do Fred
Achava ótimo
Nossa vida era excelente
Saíamos pra trabalhar pela manhã
À noite, sexo.
Abundante libidinagem
Laura trabalhava meio expediente
Ficava à tarde em casa
Pra fazer-lhe companhia, perguntou-me:
- O que acha de termos um cachorrinho?
Boa ideia
Laura trouxe o mastim
Moraria conosco
Estava sozinho no sitio do seu avô
Embora não fosse filhote, aceitei.
Arrependi-me no final de semana
O canino não podia demorar-se ao meu lado
Rosnava
Na maldade
Mas valia a pena
Estava com Laura
Sem Fred
Só alegria
Samba, suor e cerveja.
Num pagode, o cachorro me mordeu.
Eu nem sabia o nome do quadrúpede
Quando perguntava
Laura respondia:
- Cachorrinho
Cachorrinho nada
Era um daqueles galgos enormes de Roma
Imenso
Mandamo-lo de volta pro sitio
Não queria ser abocanhado
A vida professou sem o cabeça-de-ferro
As rodas de samba eram habituais
Perguntavam por Fred
Laura brincando dizia:
- Fiz macumba
Ela era mãe de santo
Tinha um terreiro em Jacarepaguá onde recebia entidades
Grandes merdas
Nunca acreditei em porra nenhuma
A vida não é tão boa
Dois anos foram-se
Descobri
Laura estava dando pra outro
Mulata escrota
Esperei a piranha chegar ao barracão
Parti pra cima xingando
Ela rindo falou:
- Fica quietinho, gatinho. Não sou mulher pra você comer sozinho. Não gosto de cachorrão! Lembra-se do Fred? Então, você é o meu homem, para com isso ou arrumo mandraca pra você.
Meu sangue ferveu
Dei na cara dela
Mandei na lata:
- Mané mandraca é o caralho! Outros de cu é rola! Puta de merda, pomba-gira, tô saindo fora. Coitado do Fred, meteu o pé. Eu vou meter também, e pensar no que fiz com ele...
Ela não reagiu
Fui apanhar a bicicleta no quartinho/dispensa
Acendi a luz
Ouvi a porta bater e a chave girar
Tentei abrir e nada
Tentei arrombar e nada
Gritei e nada
Era um quarto sem janela, cavado num buraco, no alto da favela.
Eu não tinha muito o que fazer
Comecei a ouvir cantigas de macumba
Atalum!
Peguei no sono
Quando acordei, tentei falar.
Não consegui
Meu som era outro
Agonia
Desespero
A terra girou
Fios saíram rompendo-me a pele
Muito estranho
Comecei a andar de quatro
A lua encheu e minguou
Tudo estava grande
Ante um espelho
Vi um gato branco
Não era possível
Olhei outra vez
Sim
Eu estava preso num corpo felino
Assombrado
Sobraram verbos
Dormir e acordar
Comer e cagar
Beber e mijar
Andar e correr
Pular e rolar
Miar
Essa era minha vida
Esse era meu mundo
Dentro de um quartinho/dispensa
Na cava
Cheiros de ração, areia, mijo e merda.
Sobrou o nada
Resignado, eu jogava nas onze.
Sonhando com uma bolinha de papel
Advieram meses sem ver Laura
Só restava miar alto
Insuportavelmente
A vadia teria de abrir a porta
Eu pularia na jugular
Meus dentes e unhas a fariam sangrar até a morte
Eu era um gatuno
O bichano mais ágil do mundo
A minijaguatirica assassina
Ela se arrependeria por ter-me jogado mandinga
Eu miava em estéreo
Calculando meu bote letal
A porta abriu
O cachorro dela apareceu
O Mastim Napolitano entrou babando
Voltei à minha realidade insignificante
Gatinho doméstico
Corri e pulei
Não teve jeito
Perante o mastim pastor de leões
Uma única chance, morrer rápido.
Ouvi Laura gritar:
- Pega Fred... ksksksks... mata o gatinho!
Pendurado em sua boca, triturado e chacoalhado, balançando de um lado pro outro, pensei: “Fred”.
Fui morrendo lentamente
Macumbeira feladaputa